pag inicial

EDITORIAL

Transculturlismo e Inovação


Ciente da importância da articulação e do estreitamento entre a pesquisa artístico-científica, desenvolvida no âmbito das instituições de ensino superior, e a realidade profissional contemporânea, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA propôs a realização de um seminário sobre corpo e cena na contemporaneidade, promovendo, assim, o intercâmbio de idéias e experiências entre artistas brasileiros e pesquisadores e artistas locais e internacionais. A escolha temática dos Seminários Transculturais sobre Teatro e Dança refletiu a complexidade tanto teórico-crítica como prático-formativa imposta pelas artes cênicas contemporâneas ao professor, ao artista, ao pesquisador e ao público. Além do enfoque na Educação Somática, os Seminários visaram à exploração de diferentes abordagens da encenação e do ensino, bem como a relação das artes cênicas com o cinema e a diversidade cultural. O evento Corpo e Cena na Contemporaneidade: Seminários Transculturais sobre Teatro e Dança aconteceu no Teatro Martim Gonçalves, de 25 a 30 de agosto de 2008, e contou com palestras e oficinas de professores de várias localidades do Brasil e do exterior. A recusa de apoio por parte de várias agências de fomento não abalou a convicção da coordenadora do evento, Antonia Pereira Bezerra. Pelo contrário, foi então que o transculturalismo tornou-se o método de trabalho de toda a equipe, construindo um caleidoscópio de diferenças e inovação, atingindo assim os principais objetivos do evento, a saber:

  1. Oferecer um espaço qualificado de aprofundamento do conhecimento teórico e prático acerca das noções de corpo e da produção cênica contemporânea realizada no Brasil, América do Norte, Europa e Ásia;
  2. Favorecer o intercâmbio entre pesquisadores nacionais e estrangeiros voltados ao estudo do corpo, do teatro, da dramaturgia e da cena teatral contemporânea;
  3. Promover o estreitamento entre pesquisadores nacionais da pesquisa artístico-científica desenvolvida por instituições de ensino superior nacionais e instituições de ensino superior estrangeiras;
  4. Favorecer a interação entre a pesquisa acadêmica, o contexto artístico-cultural e o ensino das artes cênicas.

Neste espírito, já na mesa de abertura, Cláudia Marisa Oliveira (Moçambique/Portugal) trouxe questões da construção da dramaturgia cênica a partir dos mitos e arquétipos, em um contexto multicultural e multidisciplinar transformador, muito além da interpretação unívoca e segura. Isto abriu caminho para a aula aberta de Márcia Strazzacappa (Campinas) sobre a Educação Somática, onde diversos fatores se agregam em sinergia: a consciência, o biológico e o meio ambiente; ou, ainda, o sensorial, o afetivo, o espiritual, o motor e o cognitivo (Sylvie Fortin, citada por Strazzacappa).
Em sua conferência, Sylvie Fortin (Canadá) relacionou os princípios da Educação Somática a questões de saúde, bem como a questões estéticas. Isto esclareceu o quanto a Educação Somática não se vincula apenas à terapia, mas também à cena e, em especial, à construção de propostas inovadoras. Uma abordagem somática, baseada no desenvolvimento da autoridade interna do aluno, transforma nossa maneira de entender o ser humano e, conseqüentemente, modifica os processos de educação e criação, mudando radicalmente os resultados estéticos e as artes como um todo.

De fato, a Educação Somática parece estar de acordo com a tendência contemporânea de “apresentar-se” ao invés de “representar um papel”. Na mesa-redonda Corpo, dramaturgia e educação, Cláudia Marisa Oliveira expôs a inversão que vem ocorrendo na contemporaneidade, onde a realidade cotidiana tornou-se um simulacro com personas e griffes, enquanto que no palco artistas vêm se expondo como “corpo vazio”. Este conceito comunga com o de “repadronização” em Educação Somática, onde se busca a modificação de padrões de movimento, ao invés do aprendizado de mais e mais vocabulários.

Isto ficou claro nas aulas abertas de Fortin e de Warwik Long (Nova Zelândia/Canadá), quando os exercícios eram feitos vagarosamente, baseados na senso-percepção e sempre intercalados com longos períodos de pausa para percebermos cada mudança sutil de padrão corporal. A utilização de imagens e estímulos verbais promoveu aquela conexão arquetípica apresentada por Cláudia Marisa, revivendo, por exemplo, a “conexão cabeça-cauda”. Além disso, a utilização do toque no processo de aprendizagem do movimento, sem enfatizar um modelo externo ideal, conectou a Educação Somática a modos de aprendizado de danças no Oriente. Como disse Ana D’Andréa (Brasil/Portugal), o centro da dança no Oriente está no centro do corpo, num processo de interiorização, enquanto que, no Ocidente, o centro da dança está fora do corpo, baseado em um modelo externo.

Assim, a Educação Somática também está de acordo com a tendência cênica contemporânea de diálogo transcultural.
Ao discorrer sobre os diferentes processos de encenação e as diferentes acepções do encenador, Walter Lima Torres afirmou que, na contemporaneidade, importa menos saber exatamente de quem é a autoria da encenação, como se pode deduzir, apesar do sentido advir de uma orientação do “coordenador do espetáculo” – ensaiador, diretor, encenador, performador –, é inerente à criação teatral sua capacidade de sintetizar uma prática expressiva que é coletiva.
Lima Torres concluiu sua intervenção problematizando as noções/funções de ensaiador, diretor e encenador teatrais, ressaltando suas implicações históricas e culturais.

Numa perspectiva muito próxima à de Walter Lima Torres, Christine Douxami (Bensançon-França), na conferência intitulada Teatro negro e políticas contemporâneas na cena brasileira, introduziu a questão étnica ao tentar discernir e debater sobre o que poderia ser um teatro negro, no Brasil pós-ditadura, comparando-o com as tendências teatrais que, num mesmo sentido e com ideologias e objetos semelhantes, emergem e se afirmam na França contemporânea. As noções de transculturalismo e de teatro de protestos foram novamente e calorosamente problematizadas.

Na palestra Cinema e artes cênicas na contemporaneidade: metodologia, teoria e prática, Francisco Serafim (Brasil/França) traçou um histórico do documentário transcultural, em especial aqueles relacionados à dança. As imagens etnográficas apresentadas atravessaram tempo e espaço, de Bali em 1898, passando por Gana em 1949, até a Groelândia em 2007. A exposição pontuou com clareza a relação fundamental entre cinema, corpo e performance, enfatizando o cuidado do cineasta na abordagem transcultural e na criação de um material audiovisual coerente com o ritmo próprio de cada evento cultural. Este aspecto do respeito ao sujeito filmado/pesquisado foi realçado por Natália Ramos (Portugal), que expôs o papel do cinema-documentário na relação transcultural entre mãe e filho, num contexto de migrações e relações familiares multiculturais.
Associam-se, assim, questões pessoais, psicológicas, terapêuticas, culturais e cênicas, naquela sinergia que mencionava Strazzacappa.

Além disso, como exposto por Cláudia Oliveira na mesa-redonda Corpo, dramaturgia e educação, as obras de arte de desconstrução e experimentação não são democráticas, pois só acontecem em alguns locais. Esta seria uma função fundamental do cinema-documentário: a de promover o acesso a estas pesquisas cênicas. Não se trata de reproduzir a obra “original” a ilusão de torná-la eterna, mas de recriar uma narrativa a partir da lógica existente na fonte, ao invés de impor outra organização dominadora (logo, não transcultural).
Neste sentido, a utilização da tecnologia como proposta por Serafim e Ramos aponta para uma alternativa à crítica feita por Ana D’Andréa na mesa-redonda Corpo, dramaturgia e educação.
Para D’Andréa, o fascínio pouco consciente pela tecnologia vem aumentar a efemeridade do corpo e da experiência e das relações, enquanto Cláudia Oliveira pontuou que todas as obras de arte são efêmeras, pois dependem da recepção. Mas esta efemeridade ontológica das obras de arte não implica necessariamente na virtualização do corpo, muito pelo contrário. Ana D’Andréa enfatizou justamente o papel das artes cênicas como antídoto à desmaterialização na contemporaneidade, criando mosaicos culturais simultaneamente individuais e coletivos. Neste sentido, Fortin associou a materialidade biológica do corpo à educação transcultural. Para Fortin, é necessário reconhecer que as similaridades filogenéticas, que datam de quatro milhões de anos, ultrapassam as diferenças culturais, e isso nos ajuda a compartilhar essas diferenças com respeito e compaixão.

Sob a insígnia do transculturalismo, além de um ensaio sobre o filme Dogville e do belíssimo perfil de Ariane Mnouchkine e o Théâtre du Soleil, o presente número da Repertório Teatro e Dança oferece aos seus leitores contribuições valiosas que fizeram do I Seminário Internacional do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA um fórum intenso e fértil em discussões acerca do corpo e da cena na contemporaneidade.

Antonia Pereira, pesquisadora do CNPq, professora e coordenadora do PPGAC/ UFBA e Ciane Fernandes, pesquisadora do CNPq e professora do PPGAC/ UFBA

 

 

Foto: Pedro Magalhães

... o centro da dança no Oriente está no centro do corpo, num processo de interiorização, enquanto que, no Ocidente, o centro da dança está fora do corpo, baseado em um modelo externo.

Foto: Pedro Magalhães

... a Educação Somática parece estar de acordo com a tendência contemporânea de “apresentar-se” ao invés de “representar um papel”.

Dogville: um estudo do espaço
fílmico/cênico pós-moderno
, Maria Helena Braga e Vaz da Costa
´

Mulher Wasusu fabricando balaio

Foto: José Francisco Serafim

"O filme é um meio de comunicação como
outro qualquer e um meio de comunicação
intercultural por excelência.
" - p. 94 - Cinema e mise en scène:
histórico, método e perspectivas da pesquisa
intercultural
,
Natália Ramos e
José Francisco Serafim

"A eternidade e um dia", de Theo
Angelopoulos (Grécia)

"Viver, tanto quanto morrer, talvez
seja um permanente estado de atravessar fronteiras,
arriscar-se, reconstruindo novas experiências
através de linguagens desconhecidas..." - p. 118 - A Eternidade e um Dia: memórias de uma tela em
carne e letra - Ciane Fernandes

webdesigned by Mudita