UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor: Naomar de Almeida Filho; Vice-Reitor: Francisco Mesquita; Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Alberto Lopes; Coordenador de Ensino de Pós-Graduação: Marcelo Embiruçu de Souza; Coordenador de Pesquisa: Rogério Hermida Quintela.
Docentes: Ângela Reis, Antonia Pereira (Coordenadora), Armindo Bião, Catarina Sant’Anna, Cássia Lopes, Ciane Fernandes, Cleise Mendes, Daniel Marques, Denise Coutinho, Dulce Aquino, Eliana Rodrigues, Eliene Benício, Eloisa Domenici, Érico Oliveira, Evelina Hoisel, Ewald Hackler, Fernando Passos, Gláucio Machado, Hebe Alves, Ivani Santana, Jacyan Castilho, João de Jesus Paes Loureiro, Lúcia Fernandes Lobato, Luiz Cláudio Cajaíaba, Luiz Marfuz, Maria Albertina (Betti) Grebler, Meran Vargens, Sérgio Farias, Sonia Rangel (Vice-Coordenadora), Suzana Martins; Representante discente: Mara Lúcia Leal; Secretária: Daiane Milene Carvalho Ramos.
André Helbo, Université Libre de Bruxelles, Bélgica; Antonia Pereira, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Armindo Bião, CNPq, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil (Editor Responsável); Bernard Müller, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França; Carlos Alba, Instituto Politécnico de Leiria, Portugal; Cássia Lopes, Universidade Federal da Bahia UFBA, Brasil; Cássia Navas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Brasil; Cleise Mendes, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Christian Marcadet, Université Panthéon Sorbonne, Paris I, França; Denise Coutinho, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Fernando Mencarelli, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Brasil; Rodolfo Obregon, Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM, México; Hans-Thies Lehman, Goethe Universität Frankfurt am Main, Alemanha; Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, Université de Paris Ouest - Nanterre La Défense, Paris X, França; Jean-François Dusigne, Université de Picardie Jules Verne, Amiens, França; Jean-Marie Pradier, Université Vincenne Saint Denis, Paris VIII, França; Jorge das Graças Veloso, Universidade de Brasília – UNB, Brasil; Josette Féral, Université du Quèbec à Montreal, Canadá; Lucas Robatto, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Luiz Cláudio Cajaíba, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Luiz Freire, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Mário Fernando Bolognesi, Universidade do Estado de São Paulo – UNESP, Brasil; Marta Isaacsson Sousa Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil; Michel Maffesoli, Université René Descartes, Paris V, França; Nara Keisermann, Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro – UNIRIO, Brasil; Nathalie Gauthard, Université de Nice Sophia Antipolis, França; Paulo Filipe Monteiro, Universidade Nova de Lisboa, Portugal; Samuel Araújo, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFRJ, Brasil; Sonia Gomes Pereira, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFRJ, Brasil; Sérgio Farias, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Brasil; Sílvia Fernandes, Universidade do Estado de São Paulo – USP, Brasil.
Organização deste número: Cleise Furtado Mendes e Cássia Lopes Diagramação: Nádia Pinho Imagem da capa: Elaine Cardim em “Policarpo Quaresma” Foto: Isabel Gouvêa Revisão: Poliana Nunes Patrocínio
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB Tiragem: 500 exemplares
ISSN 1415-32-03 Ano 12 Nº 12 2009.1
REPERTÓRIO
© 2009, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA
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Repertório Teatro & Dança é um periódico semestral do PPGAC/ UFBA, estruturado em:
Proscênio: artigo ou conjunto de artigos de diversos autores, sobre a temática central do número, equivalendo ao que em outros periódicos é denominado de Dossiê.
Peça ou Peças: texto(s) original(is) de dramaturgia de espetáculo teatral, coreográfico ou correlato, relativo ao Proscênio.
Sala de ensaios: artigo ou conjunto de artigos de diversos autores sobre temas variados, necessariamente inéditos, relativos a música, artes visuais, literatura, ciências sociais, artes e ciências do espetáculo; equivalendo ao que em outros periódicos é denominado de Varia.
Persona: artigo sobre ou entrevista com personalidade do mundo artístico e acadêmico, relativos à temática abordada no Proscênio ou em Sala de Ensaios.
Bastidores: texto ou conjunto de textos sobre espetáculos, publicações e grupos artísticos, equivalendo ao que em outros periódicos é considerado como resenhas e relatos.
Aos interessados em terem trabalhos publicados, Repertório recomenda:
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Nelson de Araújo, TEATRO/UFBA, BA, Brasil)
Repertório: teatro & dança / Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em ArtesCênicas.
– Ano 11, n. 11 (2008) - Salvador: UFBA/ PPGAC, 2008
86 p. ; 21 cm. Periodicidade irregular ISSN 1415-32-03
1. Teatro - Periódicos. 2. Dança – Periódicos. 3. Música – Periódicos
I. Universidade Federal da Bahia. II. Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas. III. Título
Este número da Revista Repertório traz para a luz do nosso Proscênio um conjunto de reflexões sobre o trabalho que em geral faz-se nos bastidores e na rotina dos ensaios para depois irromper e irradiar-se em cena, com toda sua força sugestiva, sob a forma de imagens sonoras. Salvo nas modalidades de encenação em que a música é executada ao vivo, a contribuição de músicos, arranjadores, compositores de canções e trilhas musicais em geral integra o todo da construção dramatúrgica, na feitura de peças e roteiros.
Dentre as artes que tecem o complexo sistema cênico de um espetáculo, a música possui um estatuto muito particular, pois o caráter não figurativo do signo musical estabelece uma tensão contínua com os demais elementos da representação. Esse aspecto, por si só, aponta para a particular influência de qualquer efeito musical sobre as obras cênicas. Mas, de um ângulo histórico, é preciso considerar também que o papel da música em cena vem se transformando à medida que novas perspectivas foram abertas à sua intervenção na dança, no teatro e no cinema. Na encenação contemporânea, a música não serve apenas à ilustração ou caracterização de atmosferas ou mesmo à criação de cenários acústicos, situando personagens e situações; a força dos efeitos sonoros pode exercer-se de várias formas: como contra
ponto, deslocamento, antítese ou comentário irônico da ação.
A parte intitulada Ensaios oferece ao leitor tanto a reflexão dos próprios artistas sobre sua contribuição musical às Artes Cênicas quanto a visão de pesquisadores que se debruçaram sobre gêneros do nosso cancioneiro e sobre aspectos técnico-científicos da audição musical.
A terceira parte, Persona, traz entrevista exclusiva com o músico e compositor Tuzé de Abreu, na qual o artista desenha sua multifacetada trajetória como arranjador, diretor musical e sobretudo autor de canções que estão diretamente associadas ao sucesso de vários filmes e obras cênicas.
Em Cenário brindamos o leitor com a beleza visual de Policarpo Quaresma, num ensaio fotográfico do espetáculo do Núcleo de Teatro do TCA com direção de Luiz Marfuz, a partir de adaptação de Marcos Barbosa para o romance de Lima Barreto.
O AGUDO DO GANZÁ Cássia Lopes
A VOZ DA MULHER QUE CHORA (EM ALGUM LUGAR DO PASSADO): AS CANÇÕES DOS FILMES DE ALMODÓVAR
Guilherme Maia
A MUSICALIDADE DA CENA Jacyan Castilho
GRAND OUVERTURE Leonardo Boccia
A CANTIGA DO BOI ENCANTADO E OUTRAS CENAS OPERÍSTICAS DE
ELOMAR FIGUEIRA MELLO Simone Guerreiro
ENSAIO SOBRE O SAMBA Juvino Alves dos Santos Filho
AMIGOS PARA SEMPRE Luciano Bahia
O QUE É ISTO, AUDIÇÃO MUSICAL? Mário Ulloa
MINHA MÚSICA EM CENA Tom Tavares
TUZÉ DE ABREU Entrevista de Fernanda Veloso
POLICARPO QUARESMA
LÁBARO ESTRELADO: DRAMATURGIA E MPB Cleise Furtado Mendes
INTERMEDIAÇÕES: SOBRE LÁBARO ESTRELADO
Eneida Leal Cunha
EM AGOSTO O BALÉ FOLCLÓRICO DA BAHIA COMEMOROU 20 ANOS E LEVOU OBRAPRIMA DE STRAVINSKY PARA O PALCO DO
TCA, EM SALVADOR Release 20 anos
Cássia Lopes1
Conceição, Regina e Maria Barbosa em apresentação no Percpan com Gilberto Gil, em 2000. Disponível em: http/www.bornotubeblind.com
Trata-se da leitura do filme A pessoa é para o que nasce, documentário voltado para a realidade de três cegas cantadeiras, residentes em Campina Grande, na Paraíba. Investiga-se a importância da música como forma de acesso social e, ao mesmo tempo, de construção da narrativa do Brasil. Para tanto, utilizase o termo refestança, cunhado por Gilberto Gil em sua poética, que se amplia neste ensaio a partir da leitura do filme. Palavras-chave: música, cinema, cegueira, refestança, Brasil.
This is a reading of Born to be Blind (A pessoa é para o que nasce), a documentary film regarding the life conditions of three blind street singers living in Campina Grande, Paraíba. The importance of music is researched here as a medium through which social accessibility can be achieved, as well as the construction of a narrative of Brazil. For that purpose, reference is made to the term refestança (“refeasting”), coined by Gilberto Gil in his poetics, which this essay expands through the reading of the film. Key- words: music, cinema, blindness, refestança, Brazil
A música em cena conquista os corredores da história do Brasil e movimenta os quadros da película do cinema para marcar o horizonte da refestança nas esquinas do país. Criada por Gilberto Gil em sua poética, a constelação sêmica do termo Refestança abarca, neste ensaio, três estrelas do filme A pessoa é para
o que nasce. Este documentário move-se em torno da realidade de três cegas cantadeiras,
1 Ensaísta, Profa. Dra. do Instituto de Letras da UFBA. Docente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação de Letras e Linguística da UFBA. colopes@ufba.br
Proscênio residentes em Campina Grande, na Paraíba.2
Essas três mulheres sobreviviam graças à
esmola e usavam o canto como foco atrativo,
a exemplo de tantos outros cegos nordestinos.
Em frente à esquina da Livraria Barbosa, as
três irmãs, nomeadamente Maria, Regina e
Conceição, mais conhecidas como Maroca,
Poroca e Indaiá, respectivamente, traduzem
em seus versos a força do ganzá e sua
resistência diante da pobreza e de seus
destinos. Os acordes exigiam-lhes o sen
timento de compatibilidade de propósitos, a
aliança de vontades e a inflexão melódica em
comum.
Embora o título do filme sugira a marca
do determinismo associado às amarras da
trama fisiológica e social, desvenda a brecha
por onde se ressalta a reinvenção da cegueira
pelo canto. Os enquadramentos fílmicos
centralizam-se na história dessas três mulheres
e, desse ângulo, reacendem não somente o
tema da exploração humana e social. Em
diversas cenas, assiste-se
ao abandono, ao regime de mendicância desde os primeiros anos de vida, quando uma das irmãs contava apenas 7 anos e a outra 9. Outros membros da família – como a mãe e
o companheiro, ao lado de outros parentes, – usufruíam do trabalho das três cegas. Resta aprender como essas três irmãs transformam a história de sofrimento diante da cegueira e da mendicância em narrativas de si e do
Brasil, pela via musical dos seus encantos.
Segundo o depoimento do diretor Roberto Berliner, o filme “fala de amor, fala de amor à vida”.3 Sem o estilo patético e de vitimização das três ceguinhas de Campina Grande, reescreve-se a biografia das três irmãs, no registro de suas memórias, quando, ao mesmo tempo, possibilita-se a reinvenção de si próprias e de suas narrativas. Esse empenho biográfico acaba por expandir as canções, entoadas em muitos lugares do Nordeste, com as quais se mandam os recados para o Brasil. Dessa maneira, a visão perdida mostra-se como crítica à cegueira diante da formação de um país, que aceita o artefato social ancorado na mesma escrita da nação, ao esconder os nordestinos na imagem dos vencidos pela seca ou pelo subdesenvolvimento agrário.
O filme A pessoa é para o que nasce, objetivamente, não funciona como uma epopéia do povo nordestino, nem como uma vertente trágica da cegueira diante dos sertões do Brasil. Trata-se, sobretudo, da possibilidade de pensar o Nordeste considerando suas representações e suas possibilidades. O nordestino foi produzido como reduto anacrônico deste país, no contraponto aos olhos que se dirigiam para além-mar; reafirmavam-se, assim, as malhas definidoras do colonialismo interno, quando a
maneira de enxergar a geografia brasileira espelhava-se no mesmo modo de interpretar as colônias pelos seus colonizadores: a eles
2 A PESSOA é para o que nasce. Direção: Roberto Berliner. Produção: Riofilme. Roteiro: Maurício Lissovsky. Música: Hermeto Pascoal. Apoio cultural: Ancine e Petrobrás. 2003. 3 Depoimento extraído do DVD do filme, na parte dos “extras” que compõe o menu.
caberia a missão de civilizar a barbárie ou de levar o desenvolvimento. Nesse contexto, o canto das três cegas permite questionar o mesmo traçado que associa as regiões Sudeste e Sul à vertente do Brasil moderno, contrapondo-se ao atraso dos grotões nordestinos.
O recado musical, impresso nas cantigas das três cegas, espalha-se amplamente através do cinema e extrapola a tela. O festival Percpan, sensível aos sons da rua, ciente dos músicos anônimos que circulam pelas esquinas brasileiras, volta a sua atenção para as três irmãs. Em Salvador, no ano de 2002, as ceguinhas sobem ao palco, ao lado de Gilberto Gil, para fazer ecoar as suas canções e dizer da constituição polimorfa do Brasil como nação. Elas trazem, em seus corpos, o desafio para o retrato do mapa político deste território, não mais restrito à visão ufanista, nem determinista.
Se o título do filme – A pessoa é para o que nasce – incomoda pela ambivalência de sentido – entre o determinismo e a reinvenção –, esse mesmo gesto ambivalente traduz o conflito de destinos e de interpretações sobre a geografia brasileira. Nesse limite físico, instaura-se a força simbólica da música popular que vem para rever os contrastes demarcados historicamente na cartografia nacional, cujo processo de naturalização de valores funda o Nordeste e muitos de seus atores sociais.
Assim, na fronteira entre o mar e o sertão, entre a cidade e o campo, faz-se da Refestança de Gilberto Gil um signo de leitura das diferenças que compõem o tecido social, de vidas que foram segregadas e excluídas. São os sertanejos, as mulheres, os afrodescendentes, os índios e tantos cegos nordestinos silenciados na selvageria de uma demarcação geográfica e cultural. A Refestança, no entanto, abre as veredas do sertão para outras narrativas contadas e recontadas pelo magma vital e performativo da música popular, do ritmo do corpo que desata os nós e os cintos de segurança de uma identidade – consolidada e hegemônica – da nação brasileira.
No desdobramento de cantos, no capítulo seis do documentário, assiste-se ao registro da voz de Gilberto Gil, compondo os versos que apresentariam as três cegas ao público da Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador: “Dos mistérios do universo/ a luz e a escuridão fazem pôr verso e reverso/ nos percursos da visão/a luz que corta qual faca/ afiada e bem precisa/ e a escuridão faca cega/ que só apalpa e alisa”.4 As três cegas cantam para quase quatro mil pessoas, com a naturalidade de quem se sabe pertencente ao mundo, de quem fez das esquinas a descoberta da vocação para a música, de quem reconhece a promessa guardada na rede de recados impressa no seu ganzá, quase incansável. A faca cega somente apalpa, todavia revela, na lisura da superfície dos cantos, outra maneira de cortar a realidade brasileira, de expandir outros sentidos, entre a luz dizível da câmera – que corta qual faca amolada as cenas expostas – e o indizível da faca cega, captado nas vozes das três mulheres.
Por ocasião do Percpan, Gilberto Gil traz
4 Versos extraídos da apresentação do próprio cantor durante o Percpan 2000, conforme cena apresentada no filme. 5 A PESSOA é para o que nasce. Op. cit.
Proscênio Cinco anos depois da apresentação no
Teatro Castro Alves, em novembro de 2004,
assiste-se à cena das três cegas adentrando o
Palácio do Planalto, em Brasília, para receber
a insígnia da Ordem do Mérito Cultural. As
três irmãs são recebidas com todas as
cerimônias, recepcionadas pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa, ao
lado do então ministro da cultura Gilberto
Gil. Segundo o porta-voz da cerimônia, “vocês
que recebem essa medalha e esses diplomas
são o Brasil”.6 Logo depois, as três cegas
entoam o Hino Nacional; nem elas sabiam que
suas cantigas as levariam a pisar os tapetes
do Planalto, nem o próprio Gilberto Gil tinha
consciência de que seria, também pela força
de sua arte, o ministro da cultura. Ali estava
uma cena não prevista, que ironizava o próprio
título do filme.
Assim, nas dimensões do documentário
trabalhado, seguem-se os caminhos
projetados pelo olhar do artista baiano, atento
à magia do ganzá e das sanfonas, imerso no
projeto da refestança do Brasil. As imagens,
na película, esforçam-se por traduzir aquilo
que não é dizível, no empenho de retratar as
marcas guardadas nos objetos e nos corpos
de tantos sujeitos anônimos. No final do
filme, as três cegas finalmente encontram as
águas do mar; sonho projetado para tantos
personagens que vivem nos grotões do sertão,
mas a nudez exposta das três irmãs também
permite pensar o papel da música posta em
cena, capaz de fazer da cegueira uma leitura
atenta dos sons esquecidos e vedados nas ruas
de tantas cidades brasileiras.
ALMEIDA, Miguel Vale de. Um marinheiro num mar pós-colonial. In: ___. Um mar da cor da terra: raça, cultura e política da identidade. Oeiras: Celta, 2000.
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A PESSOA é para o que nasce. Direção: Roberto Berliner. Produção: Riofilme. Roteiro: Maurício Lissovsky. Música: Hermeto Pascoal. Apoio cultural: Ancine e Petrobrás. Rio de Janeiro: Riofilme, 2003. 1 DVD (85 min), color.
LEE, Rita; GIL, Gilberto. Refestança. Direção de produção: Guto Graça Melo. Direção artística: João Augusto. Gravação ao vivo. [S.l.]: EMI-Odeon Brasil/ Som Livre, 1977. 1 CD. Remasterizado em digital em 1995.
6 A PESSOA é para o que nasce. Op. cit.
A voz da mulher que chora(em algum lugar do passado):as canções dos filmes de Almodóvar
Guilherme Maia 1
O artigo examina as canções dos filmes do diretor Pedro Almodóvar, flagra um modo especialmente engenhoso de utilizar as músicas como fios do tecido narrativo e observa um autor empenhado em imprimir uma marca de identidade em seus filmes, por meio da aplicação sistemática de rancheiras, boleros, merengues, mambos e canções flamengas, interpretadas por grandes estrelas latinas dos anos 1940-60. Palavras-chave: Cinema. Canção Popular. Análise Fílmica. Pedro Almodóvar.
The article examines director´s Pedro Almodovar film songs, it detects a special ingenious way of using music as wires of the narrative tissue and observes an author who is engaged in imprinting an identity stamp on his films, by means of a systematic application of boleros, merengues, mambos and Flamingo songs, interpreted by great Latin stars of the 1940´s-60´s. Key -Words: Cinema. Popular Song. Film analysis. Pedro Almodóvar.
La música la elijo directamente con el corazón. Pongo estas canciones porque me gustam y también porque hablan de los personagens, están destiladas o filtradas por las necessidades de las películas.2
As canções inscritas na obra do diretor Pedro Almodóvar são, como bem sabem os fãs e os estudiosos da obra do diretor manchego, dispositivos especialmente relevantes. Habilmente imbricadas na própria estrutura do roteiro, as canções de Almodóvar participam da composição do perfil dos personagens, fornecem ao espectador um índice de “latinidade”, ou mais precisamente, de um modo “latino” de expressar sentimentos e operam, por meio das letras, muitas vezes como uma espécie de fala cantada. Não é incomum encontrar em artigos e críticas sobre os filmes de Almodóvar comentários que atribuem ao fato de ele utilizar canções cujas letras trazem comentários poéticos das situações dramáticas o status de uma marca autoral importante3. Mas a singularidade do uso que Almodóvar faz das canções não está propriamente neste modo de fazer, que, em verdade, já é estratégia recorrente do cinema e podemos também flagrar
1 Compositor. Doutor em Comunicação (UFBA) e Mestre em Musicologia (UNIRIO).
Professor da UniJorge e da FTC. 2 Declaração do diretor a Frédéric Strauss em STRAUSS, Frédéric. Pedro Almodóvar: un cine visceral. Madri: Ediciones El País, 1995, p.126.
3 A pesquisadora da Universidad de Salamanca, Dra. Matilde Olarte, em palestra proferida em 2002, na Holanda, intitulada “Música española en el cine español: la banda sonora en Almodóvar”, detém-se especialmente sobre esse ponto e valoriza essa função que nomeia como metatexto. (Revista Eletrônica Arvo Net. (http://www.arvo.net/pdf/M%C3%9ASICA%20ESPA%C3%91OLA.htm) Consulta realizada em 12/07/2007. Em abordagem semelhante, Mark Allinson valoriza como importante característica da obra almodovariana o fato de existirem canções cujas letras “falam pelos personagens”. (ALLINSON, Mark. A spanish labyrinth: the films of Pedro Almodóvar. Londres/Nova Iorque : I.B. Tauris, 2001, p. 201.)
diariamente nas telenovelas4. O que é de fato distinto nas canções em Almodóvar são, em primeiro lugar, elas mesmas, ou seja, o repertório eleito pelo diretor: rancheiras, boleros, merengues, mambos, canções flamengas e canções românticas internacionais que fizeram grande sucesso entre os anos 1940 e 60, aproximadamente, interpretados quase sempre por cantoras consideradas grandes estrelas da canção de língua espanhola. Com foco no que diz respeito apenas ao repertório, portanto, as canções de Almodóvar são de um tempo passado5. Como, muitas vezes, o espectador ouve gravações originais antigas6, essa paisagem sonora “do passado” se impõe com bastante veemência. À exceção dos rocks dos primeiros filmes e de alguns outros desvios pontuais, praticamente todas as canções escolhidas pelo diretor foram lançadas nas vozes das chamadas grandes estrelas da canção popular latina. Com harmonias bem simples, melodias sentimentais de fácil memorização e interpretação vocal de acentuada dramaticidade, a maioria das canções utilizadas por Almodóvar poderiam ser, do ponto de vista de um brasileiro contemporâneo, classificadas como pertencente ao universo popularesco que costuma atrair os adjetivos brega ou cafona. É como se
imaginássemos a obra de um diretor brasileiro de grande prestígio no momento atual que utilizasse na música de todos os seus filmes, de modo recorrente e quase exclusivo, a canção romântica de Ângela Maria, Dalva de Oliveira e Isaurinha Garcia, por exemplo. Ou pensássemos em um diretor francês que fizesse o mesmo com as grandes intérpretes da canção romântica francesa da primeira metade do século passado. É curioso como esse esforço de imaginação, que constrói um objeto sem referente no mundo real do cinema, é capaz de revelar muito sobre a graça das escolhas musicais de Almodóvar.
Almodóvar, portanto, dá ênfase a um determinado conjunto de gêneros que podemos reunir sob o signo de canção romântica latinoamericana, com destaque maior para boleros e rancheras, produzida aproximadamente entre os anos 1940 e 60 do século passado. Recortado dentro desse contexto, o que se ouve são clichês harmônicos elementares de acordes triádicos e encadeamentos tonais que se afastam bem pouco da região da tônica, muitas vezes limitando-se apenas aos acordes de tônica, subdominante e dominante. As melodias são simples, motivos curtos facilmente cantáveis e memorizáveis. Estruturadas em unidades rítmico-melódicas simétricas e reiteradas, as melodias desenham contornos tonalmente “orgânicos”, ou seja, aquele tipo de melodia que, se interrompida subitamente, sabemos uma forma de completála, mesmo que estejamos ouvindo a música pela
4 A letra de “As times goes by” está, é claro, conectada com o envolvimento dos personagens interpretados por Humprey Bogart e Ingrid Bergman em Casablanca, assim como a letra de “Pretty woman” pode ser considerada como a própria fala do personagem interpretado por Richard Gere no filme homônimo da canção. Não há riscos em afirmar que na grande maioria dos filmes que fazem uso de canções, as letras estabelecem conexões diretas de sentido com situações dramáticas construídas pela encenação.
5 Sobre isso, é ilustrativo o que diz Carlos Polimeni, referindose ao uso do bolero no filme De salto alto: “La primeira película trás el cambio de la década fue Tacones lejanos, de 1991, la historia sobre uma relación enferma de uma madre com uma hija, construída al ritmo de uma colección de boleros y viejas piezas románticas, que sonambam a declaración de princípios em um mundo que santificaba lo nuevo, y em el que parecia revolucionária la música electrónica. Para ser moderno el realizador miraba hacia atrás.” (POLIMENI, Carlos. Pedro Almodóvar y el kitsch español. Madri:Campo de Ideas, 2004, p. 96.
6 Como nos mostra Mark Allinson, em capítulo dedicado à música nos filmes de Almodóvar, é estratégia poética do diretor pesquisar, em sebos de discos, canções antigas para utilizar em seus filmes. Sobre isso ver ALLINSON, Mark, ob. cit., p. 195-205. Ver também HOLGUÍN, Antonio. Pedro Almodóvar. Madri : Ediciones Cátedra, 1994, p. 189-206.
primeira vez. Os padrões rítmicos do acompanhamento de boleros, rancheras e que tais têm em comum um objetivo claro: ostinatos propulsivos, síncopes e acentos estratégicos, são peças de máquinas dinamogênicas, isto é, de dispositivos musicais configurados para produzir determinados reflexos sensório-motores, no caso,
o efeito da vontade de dançar. O andamento moderado de boleros e rancheras é um convite para a dança a dois, cheek-to-cheek e romântica. Os padrões rítmicos, melódicos e harmônicos que ouvimos remetem ao tipo de música que costumamos associar aos rituais de lazer e namoro das chamadas classes populares hispânicas, música ligeira que, de acordo com alguns modelos de valoração estética, é feita para consumo e deleite do mau gosto dos espíritos menos cultivados. Essa marca “incult” dos filmes de Almodóvar é elemento fundamental da sua matriz estética e estabelece conexões com as constantes referências ao pueblo que o diretor faz em suas obras.
O primeiro verso da canção-tema de Mulheres à beira de um ataque de nervos7, -Soy infeliz, porque sé que no me quieres – pode ser considerado uma síntese da natureza passional das palavras cantadas no cinema de Almodóvar. De um modo dominante no conjunto de obras em exame, as canções não estabelecem vínculos diretos com o capital simbólico da música pop, no sentido do movimento cultural sessentista, e nem mesmo com o pop como signo simbolicamente descapitalizado (balada-rock + amor romântico adolescente) do cenário contemporâneo. Como sabemos, o imaginário poético pop dos sessenta cantava reflexões sobre
o amor e interditava o choro dilacerado romântico nas suas canções. As letras das canções de Almodóvar cantam justamente o amor bruto irrefletido. Enquanto o pop massivo contemporâneo saboreia o amor adocicado proibindo a presença do que dói demais, as canções de Almodóvar têm o travo da amargura cafona e cantam um modelo de relação amorosa incompatível com o amor narcisista e “psi” contemporâneo. O amor tão intenso que supera a vida terrena, sentimentos envenenados pela traição, desejo de vingança, paixões sem as quais
a vida não faz sentido, súplicas e juras de amor eterno impregnam o mundo ficcional almodovariano com uma carga sentimental exagerada e kitsch de folhetim antigo. Espérame en el cielo corazòn, si es que te vas primero. Espérame que pronto yo me iré, allí donde tú estés, canta Mina em Matador8 . Hallarás mil aventuras sin amor, pero al final de todas solo tendrás dolor. Te darán de los placeres frenesí, mas no ilusión sincera como la que te di, diz Antonio para Angel em A lei do desejo9 . Piensa en mí cuando sufras, cuando llores también piensa en mí. Cuando quieras quitarme la vida, no la quiero para nada , para nada me sirve sin ti, canta Becky del Páramo em De salto alto10 . Yo vivo y tú lo sabes, desesperado y triste, y desde que te fuiste, no sé lo que es vivir, é o que canta na sacada a misteriosa loura em Kika11 . Cuando se quiere como yo quiero / grande es la herida por una traición. / Envenenaste mis sentimientos con el pecado de tu corazón, é o que dizem as presidiárias de A flor do meu segredo12 em sua performance trash.
É difícil pensar em um diretor de filmes em cujas obras o lugar da fala, na música, seja tão majoritariamente ocupado por mulheres. As vozes de Mona Bell, La Lupe, Lola Beltrán,
7 Mujeres al borde de un ataque de nervios, 1988. 8 Matador, 1986. 9 La ley del deseo, 1987 10 Tacones lejanos, 1991. 11 Kika, 1993. 12 La flor de mi secreto, 1995.
Proscênio Chavela Vargas, Fernanda e Bernarda de Utrera,
La Niña de Antaquero13, Mina, Maysa Matarazzo
e Elis Regina cantam, de modo sofrido e
freqüentemente dilacerado, as dores de amor dos
personagens femininos até mesmo quando o foco
é o amor entre dois homens, como é o caso da
voz de Maysa Matarazzo em A Lei do Desejo.
São poucos os momentos nos quais vozes
masculinas cantam no mundo ficcional de
Almodóvar. Mesmo, por exemplo, quando
ouvimos a voz do cantor cubano Bola de Nieve
cantando a balada romântica “Ay amor” em A
flor do meu segredo, o que ouvimos é uma
entoação em tessitura aguda e facilmente
confundível com uma voz feminina. Em Pepi,
Lucy, Bom y otras chicas del montón14, ouvimos
brevemente uma voz grave masculina na zarzuela
encenada na cena da surra no suposto policial.
Em O que foi que eu fiz para merecer isso?15, é
uma voz masculina que canta La bién pagá.
Outras exceções são o bolero “Lo dudo”,
interpretado pelo Trio los Panchos em A lei do
desejo e a voz de Ismael Lô cantando
“Tajabone” em Tudo sobre minha mãe16. Nos
dois casos, todavia, as vozes masculinas exploram
com ênfase a região aguda de tenor.
Confirmando a tendência, Caetano Veloso em
Fale com ela17 canta o refrão de “Cucurrucucu
paloma” com a mesma entonação em falsete que
usa em “Tonada de luna llena”, canção que
ouvimos sobre os créditos finais de A flor do meu
segredo.
Essa opção massiva pela voz de mulheres coincide, evidentemente, com o ponto-de-vista feminino que a maioria dos filmes de Almodóvar constrói. Mais que simplesmente uma voz feminina - ou uma voz do passado-, no entanto, a voz que canta nos filmes de Almodóvar tem nas características de interpretação a sua mais profunda marca de distinção e um dispositivo fundamental na produção das hipérboles sentimentais típicas dos almodramas18. A voz que canta em Almodóvar é quase sempre a voz que chora. As cantoras eleitas para a trilha sonora do diretor são aquelas que no jargão da indústria da canção popular “têm uma lágrima na voz”. Em um gradiente de intensidade que vai do choro cool de Maysa Matarazzo, em A lei do desejo, ao sofrimento gritado das cantoras flamengas Fernanda e Bernarda de Utrera em Kika e La Niña de Antaquero, em Carne Trêmula19 , passando pelo vibrato choroso de Chavela Vargas cantando “Luz de luna” e “En el último trago”, são vozes que expressam a dor intensa, em perfeita conjunção com as cores fortes dos cenários e figurinos e com as explosões sentimentais dos personagens.
Do rock juvenil da banda de Bom, em Pepi, Lucy, Bom y otras chicas del montón20, ao tango composto por Carlos Gardel cantado por Raimunda, personagem interpretado por Penélope Cruz em Volver21, a obra de Almodóvar é permeada reiteradamente por performances musicais e personagens que cantam. De um modo geral, nos filmes onde o programa de natureza cômica é dominante, as performances musicais “ao vivo” são mecanismos da produção de um riso que convoca o humor grotesco das dublagens “erradas” de travestis, como Letal, em De salto alto e Juan, o falso Ignacio, em A má educação. A graça cômica também é construída pela via do exagero sentimental da apresentação no palco da personagem Becky del Páramo cantando “Piensa em mi”, também em De salto alto, pela brusca intervenção absurda de “Bien pagá” no drama real de Glória em O que foi que eu fiz... e pelo humor enviesado resultante da justaposição de uma canção em alemão com um ato sexual frustrado em uma academia de artes marciais, no mesmo filme.
Já em outros momentos, quando o drama é tratado com menos ironia, como em Fale com ela e A má educação22, as performances musicais têm outro sinal. Em A má educação, a canção “Moon river” e o “Kyrie” cantado pelo coro de crianças, são dispositivos que têm como função basilar a representação da inocência e da pureza da infância. Em Fale com ela, temos um caso no qual a música ao vivo é, antes de tudo, uma obra expressiva que leva a sério a tarefa de seduzir o
13 Intérprete da canção “Ay mi Perro” em Carne trêmula. 14 1980. Sem título em português. 15 ¿Qué He Hecho Yo Para Merecer Esto?!!, 1984. 16 Todo sobre mi madre, 1998. 17 Hable com ella, 2002. 18 Termo empregado por Paul Julian Smith em SMITH, Julian.
Desire unlimited: the cinema of Pedro Almodóvar. Londres: Verso, 2000. 19 Carne trémula, 1997. 20 1980. Sem título em português. 21 Volver, 2006. 22 La mala educación, 2004.
ouvinte com sua beleza. Mitigada de seus exageros por uma interpretação extremamente contida em um frágil falsete e por um acompanhamento sofisticado23 que retira da ranchera parte de suas marcas popularescas, a performance de Caetano Veloso cantando “Cucurrucucu paloma” em Fale com ela é, sem dúvida, um programa com ambições estéticas maiores do que os boleros e rancheiras que dominam os outros filmes. A performance é poesia pura apresentada com competência. A rigor, ademais, o espaço dado à canção aqui é o mesmo que Almodóvar costuma reservar tanto para apresentações “ao vivo” quanto para rendições extradiegéticas de canções, ou seja, uma versão inteira da letra cantada, em geral sem repetições. Da mesma forma, a letra da música tem relações estreitas com a narrativa. Ainda em coerência com o seu programa, a cena pode ser lida tanto como um sonho – ou uma lembrança - de Marco, e, portanto, plenamente justificada em termos dramatúrgicos, quanto como um movimento poético que se afasta do trash e se aproxima do chique, hipótese que ganha força se levarmos em conta que a outra canção da trilha sonora de Fale com ela, “Por toda a minha vida”, é a canção mais sofisticada em termos melódicos e harmônicos de toda a obra de Almodóvar. Estaria Almodóvar, em Fale com ela, dando sinais de abandonar sua griffe brega? A dublagem da voz de Sarita Montiel por um travesti em A má educação deu suficiente resposta a essa questão.
Em O que foi que eu fiz para merecer isso?, a canção dominante na trilha é “Nur nicht aus lieben weinen”24, cantada por Zarah Leander25. Já na primeira intervenção da canção, Almodóvar extrai um curioso efeito de troca de polaridade da música. A ação começa quando vemos a protagonista Gloria (Carmen Maura), que faz faxina em uma academia de artes marciais, continuar o seu trabalho após uma tentativa frustrada de fazer sexo com um dos alunos, que, saberemos mais tarde, é um investigador de polícia que sofre de disfunção erétil. Enquanto vemos planos alternados de Glória e do investigador, constrangidos em um ambiente repleto de elementos que remetem ao oriente – a decoração e os dispositivos de uma sala onde são praticadas artes marciais -, entra na trilha sonora uma música em tom menor, dramática, cantada por uma contralto, em alemão, com interpretação passional. O caráter insólito da situação dramática parece ser acentuado pela audição de uma música absolutamente improvável naquele contexto. Além disso, ocorre uma espécie de efeito de desorientação “territorial” decorrente de signos que remetem ao mesmo tempo a “Espanha”, “oriente” e “Alemanha”. Almodóvar sustenta essa dissonância audiovisual26 por aproximadamente doze segundos e somente resolve o conflito no corte para a cena seguinte, quando vemos que aquela canção está, na verdade, sendo cantada de modo entusiasmado por um motorista de táxi que dirige nas ruas de uma cidade grande ouvindoa no aparelho de som do carro. Saberemos adiante que o motorista é Antônio, o marido de Glória. Vemos um passageiro fazer sinal e o táxi parar para pegá-lo. Após o embarque do passageiro, a música será agora utilizada como o elemento de aproximação entre o motorista e o passageiro, que, ouvindo a canção que continua a tocar no aparelho, puxa conversa com Antônio:
Passageiro: Você gosta de Lotte Von Mossel?
Antônio: Já vivi na Alemanha. Trabalhei como
motorista de uma amiga dela. Cantora também.
Mas um pouco mais jovem, é claro. Bem, na
verdade tivemos um caso. Essa canção me traz
muitas recordações.27
Temos aqui, portanto, um momento exemplar onde a música troca de sinal várias vezes. É apresentada como uma dissonância audiovisual. Em seguida, o conflito audiovisual é resolvido e somos apresentados a um aspecto
23 Baixo acústico, violoncelo e violão acústico em climas
rarefeitos e discretos. 24 (Mackeben/Beckmann/Boheme) Não chore pelo amor perdido, em livre tradução.
25 De origem sueca, Zarah Leander foi uma das mais populares cantoras e atrizes em atividade na Alemanha durante o nazismo.
26 Metáfora proposta por Michel Chion, que no livro Audiovision, critica o modo como a Nouvelle Vague adotou e valorou a noção eisesnteiniana de contraponto audiovisual. Falar sobre contraponto no cinema, segundo Chion, é tomar por empréstimo uma noção imprecisa e aplicar uma especulação intelectual ao invés de um conceito viável que pode ser trabalhado num contexto prático. Para Chion, se é
o caso de se apropriar de uma expressão do domínio da música, a noção de harmonia dissonante, dá conta muito melhor de uma discordância momentânea entre os sentidos produzidos pelas imagens e pelos sons. [CHION, Michel. Audiovision: Sound on Screen. New York: Columbia University, 1993. Tradução de: L’Audio-Vision (Paris: Nathan, 1991).]
27 Transcrição das legendas.
peculiar de um personagem, marido da protagonista, que canta uma canção que, logo saberemos, remete a um caso que ele teve com outra mulher. Depois, é o elemento que serve de mote para o início da relação entre o passageiro e
Como bem nos mostra Russel Lack, em movimento sincrônico com a expansão da indústria audiovisual (TV e indústria fonográfica), a ampla difusão do rock, nos anos 1950, e da música chamada pop nos anos 1960, o cinema da segunda metade do século passado viu-se tomado por canções populares que tinham como objetivo primário não o exercício de função dramatúrgica, mas a tarefa de promover o filme e de gerar lucros para a indústria fonográfica. Para Lack, a exigência, por parte dos produtores, de “uma canção de sucesso” agiu negativamente sobre a autonomia da narrativa cinematográfica, que até então fazia um uso exclusivamente funcional da música, ou seja, a música era composta, gravada e editada sob a batuta da dramaturgia. Ainda segundo Lack, construir a parte musical da trilha sonora de um filme com um olho posto nos ingressos que a música pode arrecadar depois, tem como resultado, de um modo geral, um abalo na coerência da narrativa fílmica.28 A seqüência de abertura de O que foi que eu fiz... descrita nos parágrafos anteriores, é um ótimo exemplo do modo como Almodóvar, na contramão da tendência apontada por Lack, utiliza canções como fios importantes do tecido dramatúrgico de seus filmes.
“Soy infeliz”, em Mulheres à beira de um ataque de nervos, “Nur nicht aus lieben weinen” e “La bién pagá”, em O que foi que eu fiz..., “Torna a Sorriento” e “Moon river”, em A má educação, “Encadenados”, em Maus hábitos, “Piensa en mi” em De salto alto, estão articuladas como dispositivos imprescindíveis tanto da história propriamente dita como da montagem do filme. Se retirarmos, por exemplo, a canção “Nur nicht aus lieben weinen” de O que
28 LACK, Russel. La Música en el Cine. Madrid, Ediciones Cátedra, 1999, p. 160.
foi que eu fiz... e “Piensa em mi” em De salto alto, a história terá, necessariamente, que ser contada de uma outra maneira. Além disso, são muitos os personagens que cantam como Luci em Pepi... , Ignacio em A má educação, Becky em De salto alto e Yolanda em Maus hábitos.
Do ponto de vista da montagem, a estratégia dominante é apresentar uma exposição inteira da canção, sem repetições. É extremamente recorrente a prática de utilizar a introdução acompanhando transições e/ou planos descritivos, fazendo coincidir a entrada da voz cantada com o corte para a cena seguinte, prática que, de um modo geral, tem, ao mesmo tempo, uma função de pontuação e de um crescendo na intensidade dramática. Quando há canção, portanto, a forma e o tempo de duração da canção passam a ser um elemento definidor da duração de cenas. Muitas vezes, também, como em O que foi que eu fiz... e Áta-me 29, por exemplo, uma canção, ou sua introdução é antecipada de uma cena posterior com o objetivo de provocar dissonâncias audiovisuais expressivas.
Em síntese, o espectador de Almodóvar recebe um pacote extremamente peculiar dominado por canções românticas latinas de um tempo passado, cantadas por mulheres que, com interpretação carregada de sentimen-talidade, choram as dores de um amor de folhetins baratos e de cabarés. Uma perspectiva interessante para a análise desse programa seria classificá-lo na chave da apropriação irônica do mau-gosto e dos clichês de um imaginário sentimental, atitude poética própria de um esquema reativado por produções cinematográficas recentes que Ismail Xavier chamou de melodrama pop30. De fato, a canção popularesca é uma ferramenta importante da distorção que Almodóvar faz do melodrama. Ao carregar nas tintas da sentimentalidade cafona, Almodóvar, de certa forma, adiciona uma graça irônica à nossa compaixão pelo sofrimento dos personagens que interdita o pacto melodramático pleno.
Há importantes exceções, é claro. “Por toda a minha vida” e “Cucurrucucu Paloma” em Fale com ela, são programas de inequívoca vocação lírica, assim como a canção “Tajabone” leva cem por cento a sério a produção da beleza na chegada de Manuela a Barcelona em Tudo sobre minha mãe. “Tonada de luna llena”, em A flor do meu segredo, também não autoriza leituras na chave da ironia. Uma macrovisão da obra almodovariana, no entanto, permite afirmar que os mais fortes compromissos das canções de Almodóvar, numa perspectiva geral, são com a graça cômica, com estratégias de impressão de marcas autorais e com o estabelecimento de elos formais e narrativos importantes com os demais recursos dos filmes. Dispostas em um jogo audiovisual sempre engenhoso, dificilmente podem ser acusadas de participar da construção de seqüências digressoras gratuitas. Ao mesmo tempo, as escolhas do diretor no eixo dos paradigmas são tão peculiares que instigam a fazer a temerária afirmação de que nenhum outro diretor usa a canção da forma como Almodóvar o faz.
ALLINSON, Mark. A spanish labyrinth : the films of Pedro Almodóvar. Londres/Nova Iorque : I.B. Tauris, 2001.
CHION, Michel. Audiovision: sound on screen. New York: Columbia University, 1993. Tradução de: L’Audio-Vision (Paris: Nathan, 1991).
HOLGUÍN, Antonio. Pedro Almodóvar. Madri :
Ediciones Cátedra, 1994. LACK, Russel. La música en el cine. Madrid, Ediciones Cátedra, 1999.
español. Madri : Campo de Ideas, 2004, p. 96. SMITH, Julian. Desire unlimited: the cinema of Pedro Almodóvar. Londres: Verso, 2000.
STRAUSS, Frédéric. Pedro Almodóvar: um cine
visceral. Madri: Ediciones El País, 1995, p.126. XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. Cosac & Naify: São Paulo, 2003.
29¡Atame!, 1990. Referimo-nos aqui à cena na qual vemos Marina amedrontada e perplexa com o comportamento de Ricky. Ele invadiu seu apartamento, a agrediu, ameaçou e agora diz que a ama. Quando o invasor lhe pergunta de modo delicado e absolutamente inocente se ela havia gostado dos bombons que ele havia colocado em sua bolsa em cena anterior, a câmera para em um primeiro plano de Marina com uma expressão de completa perplexidade, enquanto ouvimos entrar na trilha uma levada de bateria, baixo e órgão de caráter quase circense. O primeiro plano de Marina se estende por onze segundos, e só depois ficamos sabendo que a música está sendo cantada pela irmã de Marina em uma festa (a performance é divertida, com a própria mãe de Almodóvar fazendo parte do coro). A sustentação da disjunção entre a música e a expressão de Marina provoca um singular efeito de estranhamento, uma espécie de ponto de interrogação-exclamação bem-humorado, que amplifica
o caráter insólito da situação. Durante um tempo, nem Marina nem os espectadores estão entendendo nada.
30 XAVIER, Ismail. O Olhar e a Cena. Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. Cosac & Naify: São Paulo, 2003, p. 87-88.
Resumo
Os aspectos musicais de um espetáculo teatral, especificamente em suas noções de ‘ritmo’ e de ‘dinâmica’, são ainda hoje considerados como elementos ornamentais ou complementares da composição, relegados a segundo plano, como constituintes da poética do espetáculo. Entretanto, estes aspectos são ferramentas de produção de sentido, que permeiam, muitas vezes de forma intuitiva, o processo de composição da cena. Palavras-chave: Teatro.Ritmo. Dinâmica. Partitura. Musicalidade.
The musical aspects which are concerned to theatrical practice, specifically the notions of "rhythm" and "dynamics", are still often relegated to the background as poetic constituents, regarded as ornamental or complementary aspects of the composition.
Nevertheless, they quite contribute to achievement of meaning, in spite of their pervading, often in a intuitive way, the putting-onstage process. Key words: Theatre.Rhythm. Dynamics. Score. Musicality.
Cena primeira: os atores que ensaiam um espetáculo de teatro ou dança realizam, perante
Cena segunda: o mesmo, ou outro, diretor teatral, ainda em meio ao processo de montagem, constata que as cenas, já esboçadas espacialmente, ainda não se desenrolam de forma fluente, contínua. Algo parece estancar entre as cenas, como se a ligação entre elas não fosse fluida, natural, orgânica, e sim forçada. A peça dá a impressão de transcorrer “aos solavancos” (alguém que já tenha ensaiado um espetáculo teatral sabe a que sensação me refiro). O diretor conclui, para si mesmo ou para seu assistente: “Ainda não tem ritmo”.
Cena terceira: o diretor (ainda o mesmo ou um terceiro) instrui seus atores, empenhados na composição de suas partituras corporais (seqüências de ações psicofísicas que delineiam o percurso da personagem ou actante. Esta denominação será oportunamente objeto de nossa discussão) a variarem o ritmo de suas ações, fazendo-as ora mais rápidas, ora mais lentas. Talvez ele se lembre de pedir-lhes que acrescentem, ou reconheçam onde existem, as pausas.
Cena última: o crítico teatral escreve, em seu exíguo espaço midiático, ou em artigo publicado em uma coletânea sobre teatro brasileiro: “... o espetáculo carece de um ritmo mais dinâmico,
1 Profa. Dra. da Escola de Teatro da UFBA. Atriz, diretora teatral e bailarina.
caindo num tom monocórdio e arrastado, o que acaba permitindo devaneios do espectador...”.
Todas as semelhanças das cenas acima – fictícias (?) – com a rotina dos palcos não é mera coincidência. Todas ilustram o fato de que o ritmo, este construtor de sentido, este criador de poiesis, este articulador do movimento e, para encerrar por enquanto, este componente dramático tão indispensável à composição do texto/tecido espetacular, seja de tão difícil definição: todos o desejam, mas poucos se dedicam a tomá-lo como objeto de estudo, com fins estéticos ou analíticos. Todos o intuem, satisfeitos com o fato de que o ritmo, intrínseco ao espetáculo, pode ser apreendido pela percepção sensorial; satisfeitos, portanto, com o fato de que podemos sentir o ritmo. De alguma forma, sabedores de que o ritmo, perceptível em nível cinético, provoca efeitos fisiológicos e até cognitivos tão imediatos (desde alteração na pulsação sangüínea e na contração muscular até alteração da consciência e dos níveis de atenção), que quase se torna dispensável que nos dediquemos a analisá-lo, pensá-lo como signo total – não reduzido tão somente a significante
– constituinte da própria poesia.
Entretanto, essa tendência em relegá-lo como fator decorrente – e não estruturante – do fenômeno cênico leva-nos frequentemente a olvidar sua importância, atribuindo-lhe função acessória. E ainda a denominar indistintamente como “ritmo” certas atribuições de acento, de dinâmica e de harmonia na composição da obra teatral. O que é pior, a tentar por vezes sanar aspectos dessas atribuições com soluções tão equivocadas quanto inócuas – acelerando a velocidade da peça, por exemplo, quando a sentimos “sem ritmo”. Ou confundindo intensidade emocional com intensidade sonora, caso em que as cenas “tensas” resultam “gritadas”.
O perfil rítmico de um espetáculo vai além disso, e encenadores sensíveis (em grande número aqueles que tiveram alguma iniciação musical) sabem disso. É comum ouvirmos, a respeito de um espetáculo teatral, que ele possui alto senso de musicalidade. Nem sempre se quer dizer com isso que ele apresenta canções, nem mesmo que conte com trilha sonora musical (embora, às vezes, seja esse o caso). Geralmente essa qualidade – no sentido de característica – é atribuída como qualidade – no sentido de um adjetivo elogioso – ao espetáculo que se faz perceber, pelo espectador, como harmonioso, seja em sua duração, seja na concatenação de seus elementos. Neste caso, um espetáculo harmonioso é o que não deixa o espectador perceber o tempo passar. Isto é, a percepção temporal da platéia é induzida, pelo prazer da fruição, a entender como curta uma experiência gratificante. Ao contrário, espetáculos tediosos seriam os que causam a impressão de nunca acabar, ou de durar “além do necessário”, quando, aos olhos (e demais sentidos) do espectador, ele já teria completado sua mensagem1.
Um espetáculo harmonioso poderia ser também o que concatena de tal forma (prazerosa) suas partes constitutivas (interpretação, texto, cenário, etc.), que dá a impressão de que essas partes estão todas “em seus devidos lugares”, numa justa proporção, contribuindo para a construção de uma obra que, em sua totalidade, soa íntegra e adequada. Essa “justa forma” ganha, freqüentemente, a associação com uma sinfonia. Na composição musical, a harmonia é a combinação vertical dos desenhos de cada voz ou instrumento – no nosso caso, por analogia, ela poderia ser a combinação dos elementos que compõem a cena. Por isso se diz que um bom espetáculo “soa como música”
– tal como o senso comum diz de um bom time de futebol, entrosado e com boas jogadas ensaiadas, que ele “joga por música”.
É interessante notar que, em ambos os casos, a percepção da musicalidade é atribuída ao receptor, no sentido em que a musicalidade é considerada um atributo perceptível em maior ou menor grau, a depender da sensação de conforto ou desconforto do espectador. Talvez por estar tão intrinsecamente ligada à percepção sensórioemotiva, a questão da musicalidade no espetáculo cênico – sua definição, análise e procedimentos para criá-la – tenha ficado, ao longo da história no teatro ocidental, relegada a segundo plano. O fato é que não há muita literatura crítica a respeito, nem de análise, nem de demonstração de exemplos, mesmo no campo da recepção teatral. Esta suposta não-preocupação em analisar um fenômeno que é reconhecível intuitivamente pode também estar ligada a uma certa tradição de abordagem da história do teatro e das estéticas teatrais – uma tradição que privilegia os sentidos da obra, em uma tentativa de apreensão semântica da mesma, em detrimento do estudo de suas formas, seus procedimentos de criação metodológicos e da construção de sua sintaxe.
1 Um lendário crítico teatral da Viena dos anos 20 -30, Alfred Polgar, disse certa vez a respeito de um espetáculo, com a acidez que lhe era peculiar: “[...] o espetáculo começou às 08:00. Depois de duas longas horas olhei no meu relógio: eram oito horas e dez minutos [...]”. Citado por Ewald Hackler em depoimento oral, 2007.
Proscênio Nesta visão do teatro, torna-se mais premente o
estudo dos temas, dos assuntos, das relações
morais entre personagens, dos aspectos
sociológicos, do que sua organização formal.
Entrementes, a musicalidade, entendida
como uma construção dinâmica dos signos
plásticos e sonoros do espetáculo, remete-nos
àquele componente do fenômeno teatral inerente
ao domínio do imponderável, aquele que
ninguém consegue explicar, embora todos
busquem seu segredo: o que faz de um espetáculo
uma verdadeira sinfonia. isso nos leva a
reconhecer, em determinado encenador ou ator,
o domínio do timing certo, um determinado senso rítmico apurado. É o segredo conversado nas cantinas e restaurantes, após cada estréia, em todas as partes do mundo; é o quebra-cabeça dos críticos especializados, que tentam traduzir o intraduzível, definir o indefinível: porque um espetáculo “soa”, “ressoa”, provoca ressonâncias (afetivas) e outro simplesmente... não.
Seria útil iniciar esta investigação pelo conceito de música que emana do próprio campo da teoria musical. Os dicionários classificam música tanto como “arte e ciência de combinar os sons de modo agradável ao ouvido” como “qualquer composição musical”, ou mesmo “qualquer conjunto de sons”
– todas essas definições do Novo Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986). A escolha do Dicionário não foi aleatória: o “Aurélio” sintetiza pelo menos uma dúzia de definições colhidas, inclusive em dicionários de música (cf. referências bibliográficas), que costumam oscilar entre conceituar a música como um conjunto “agradável” de sons ou simplesmente um conjunto de sons qualquer, soe este agradável ou não a seu ouvinte. Todas, entretanto, reforçam, em maior ou menor grau, a noção de que se trata de um conjunto de sons, agrupados de forma combinada, segundo alguma lógica interna – a lógica da composição. Cabe, então, sintetizar, para este nosso entendimento, o conceito de música como uma combinação de sons, ou antes, um agrupamento de sons combinados, e isso me parece suficiente por enquanto.
É interessante colher ainda a definição de “música” do Dicionario de la Música, de Michel Brenet, atribuída a Santo Agostinho: “A música é a arte de bem mover’ (subentendem-se os sons e os ritmos)” (1981, p.341, tradução minha). Brenet considera definição a mais precisa acerca do conceito de música na Antiguidade. Ainda que, nos tempos modernos, esta definição tenha dado lugar a outras, podemos pensar se ela não nos serve para delimitar o que seria esse aspecto musical de uma obra de arte.
Partamos então desta definição – “a arte de bem mover” – para arquitetar a hipótese de que a musicalidade seja a principal habilidade de compor uma obra artística, na medida em que é a habilidade de “mover”, isto é, selecionar e organizar as partes que lhe são inerentes. O artista com-põe, ele “põe junto”. Esta articulação seria a atividade intrínseca da criação artística. Quando reconhecemos o ritmo (que traz plasticidade), as variações de intensidade (que constroem uma dinâmica) numa obra pictórica, por exemplo, estamos de certa forma reconhecendo e valorizando o esforço de organização do artista, que produz em nós, intencionalmente, uma sensação de movimento – ou da ausência dele. Da mesma forma, na dança, na arquitetura, na literatura. Chamamos de virtuoso o artista que soube dominar os meandros de tempo e espaço, moldando-lhes a forma, ritmo, pulsação, intensidade, etc. Reconhecemos como obra de arte não apenas a que nos remeta a um referente ou nos apresente um conteúdo, mas a que faz brotar uma lógica (sua lógica interna) da própria linguagem; obra tão mais significativa quanto mais for reconhecida a habilidade com que foram articuladas suas partes, sejam elas movimentos, linhas, palavras.
Agora lembremos que os elementos que compõem a música são distinguidos como melodia, que vem a ser a combinação de sons consecutivos, ou sucessivos, como, por exemplo, numa escala musical; harmonia, que seria tanto a combinação de sons simultâneos para produzir acordes, como a utilização sucessiva de progressões de acordes; e ritmo, que se refere à ordenação dos sons no tempo (considerando tanto sua duração no tempo quanto a articulação do tempo entre os sons, as pausas) (MED, 1996; DICIONÁRIO GROVE, 1994). A complexidade de relações entre melodia, harmonia e ritmo gera muitas possibilidades criativas de relacionamento entre as diferentes “vozes” (quer sejam partes, linhas melódicas ou instrumentos), gerando diferentes texturas musicais. Estes modos de relacionamento mudam não só em função do gosto do autor, mas também do seu contexto histórico.
Melodia, harmonia e ritmo, inseparavelmente interligados, definem, portanto, “como” os sons serão arranjados, de forma a compor um conjunto, um agrupamento. Este “como” faz toda a diferença. Entre o ruído de um avião trilhando o céu e um acorde perfeito maior, não há diferença de valor estético, isto é, não há porque considerar que um evento é passível de se transformar em música, e o outro, não (pelo menos não para a música contemporânea, que trabalha com os ruídos de qualquer espécie na sua composição). A dife-rença está em “como”
o compositor coloca estes sons, articula-os em associação. A estrutu-ração da obra musical depende, então, da habilidade do compo-sitor em “jogar” com as propriedades do som, do ruído e do silêncio. A maneira de fazê-lo, isto é, como colocar juntos elementos extraídos de uma vastíssima comple-xidade de possibilida-des, é que se constitui, em última instância, na poiesis da música.
Para ter uma idéia apenas superficial de tipos de organização rítmica que moldam o perfil poético do espetáculo, vamos re-correr de novo aos procedimentos de composição na música. Pensemos que a obra musical pode, grosso modo, estar estruturada das seguintes maneiras: 1) de forma uníssona (mo-nofônica), na qual apenas uma “voz” se faz ouvir; 2) de maneira homofônica, quando diversas vozes são entrelaçadas em har-monias, mas ainda se pode reconhecer uma melodia principal, identificável
por toda a obra em meio
Da música para a este acompanhamento2. Numa relação
homofônica, o acompanhamento pode cola-Partindo dessas borar para realçar estapremissas, a melodia principal, oumusicalidade, pode contradizer aquiloentendida aqui como que esta sugere. Nestehabilidade de caso, são criados efeitosarticulação dos signos, surpreendentes, porconstrói o sentido.
vezes com a criação deSeria exagero tensões que, a critérioafirmar que isso parece do compositor, podemser especialmente permanecer irresolverídico nas Artes vidas. Não é difícil,Cênicas? O teatro, ou neste momento, pensarmelhor, as Artes Cênicas nas tradicionais relaçõesem geral são o “lugar”, de tensão entre persopor excelência, onde se nagens protagonistas,imbricam as dimensões antagonistas e coadjutemporais e espaciais, já vantes, em torno dasque, todo o tempo, as quais se desenvolve oações praticadas na “conflito” principal,cena estão desenhando
o espaço e moldando o tempo, segundo a poética assertiva de Eugenio Barba (BARBA,1995). Palavras e silêncios, gestos e posturas, formas, desenhos, sons, movimentos, materiais, massas, volumes, luz e sombras são os elementos estruturantes desta obra tão aberta, parafraseando Umberto Eco. As trocas, ambivalências, paralelismos, recorrências, contrastes, rupturas ou contigüidades com que ocorrem são os procedimentos que os organizam. O resultado: a criação de texturas, densidades, intensidades, conceitos, linearidade ou circularidade temporal, dimensões afetivas e dimensões espaciais, dinâmica, rela-ciona-mentos. O principal eixo de concatenação disso tudo: o ritmo global da encenação, ou melhor, os ritmos da encenação, que causarão uma determinada sensação no espectador.
responsável pela unidade de ação nos enredos clássicos.
Finalmente, quando várias vozes são ouvidas em igual nível de importância, temos uma polifonia. Nesta, o compositor experimenta como as linhas melódicas se relacionam consigo mesmas. Então, as várias linhas são como que “trançadas”, elaboradas num entrelaçamento. Na verdade, a polifonia soa muito mais como várias conversações paralelas acontecendo ao mesmo tempo. Na maioria das utilizações modernas, ela não se distingue do contraponto (contra punctum, “contra a nota”), que é o procedimento de se acrescentar uma parte à(s) outra(s) preexistente(s). Quando há distinção entre os termos, aplica-se mais à denominação em
2 Monofonia = voz única. Homofonia = vozes compatíveis (DICIONÁRIO GROVE, op. cit. p.733).
Proscênio específicos períodos históricos: a polifonia é
usada em referência ao final da Idade Média e
Renascença; o contraponto, em relação ao
Barroco, do qual as fugas de Bach são o exemplo
mais notório.
Importantíssimo historicamente, porque tem
sido o lastro de toda a música “construtivista”
do Barroco até hoje, o princípio da polifonia nos
remete, por exemplo, ao que de mais inovador
tem sido feito em teatro e cinema, inclusive em
nossos dias. A opção por pulverizar a narrativa
em vertentes paralelas, concomitantes ou
consecutivas ou, ao contrário, por privilegiar, à
maneira homofônica, um discurso único, na
maior parte das vezes é um enredo, é opção
decisiva para o caráter formal de toda a obra.
Na história do teatro ocidental, estes
diferentes modos de articulação foram
responsáveis por modelos estéticos bem definidos,
uma vez que obedeciam por vezes a poéticas
hierarquizadas. Cada época cunhou paradigmas
para a organização da peça escrita para o teatro,
em função da extensão das cenas, sua divisão em
atos, quadros, e ainda pelo número de
personagens e distribuição das réplicas. A história
do teatro nos apresenta, já há alguns séculos,
exemplos de dramaturgia que opera com
seqüências irregulares de cenas, “despro
porcionais” para os cânones de suas épocas. Nas
obras de Lenz (século XVIII), Büchner (século
XIX), e Brecht, no século XX, encontramos este
modelo de fragmentação e irregularidade que
afronta a clássica unidade de ação que tem sido
paradigma de proporção ideal desde a tragédia
grega. A dramaturgia contemporânea parece
mesmo rejeitar este específico sentido de
harmonia, preferindo por vezes eleger como tema
justamente a desorganização da forma. Nem por
isso, deixa de engendrar um sistema rítmico
complexo, rico em possibilidades; nem deixa de
transparecer alguma relação de proporção entre
suas partes.
É preciso apreender o sentido de ritmo como
produtor de uma sensação harmoniosa e de
relações justas e adequadas, sejam quais forem
estas relações. É interessante nos reportarmos à
fala do educador musical canadense Murray
Schaffer (1992), quando diz:
No seu sentido mais amplo, o ritmo divide o todo em partes. O ritmo articula um percurso, como degraus (dividindo o andar em partes) ou qualquer outra divisão arbitrária do percurso. [...] Pode haver ritmos regulares e ritmos nervosos, irregulares. O fato de serem ou não regulares nada tem a ver com sua beleza.
[...] Pelo fato de o ritmo ser uma seta que aponta numa determinada direção, o objetivo de qualquer ritmo é o de voltar para casa (acorde final).
Alguns chegam a seu destino, outros não.
Composições ritmicamente interessantes nos
deixam em suspense. (p.87-88)
Ao articular esse percurso, o ritmo molda o desenvolvimento da obra. Dá-lhe uma forma, um perfil. Aparece como um organizador de sua sintaxe, mas ao promover a interação contextual de seus componentes, confere-lhe uma semântica.
Interessante seria o paralelismo com o discurso verbal, ou, mais especificamente, com o texto escrito. Partamos de Michel Brenet (op. cit.) que entende que o ritmo é o equivalente musical à pontuação no discurso verbal (p.457). Então, tomando um discurso escrito, vemos que há um encadeamento rítmico, dado pela pontuação, que quase sempre procura estabelecer uma lógica de sentido (salvo em caso de textos específicos, como escrita automática, experimentos lingüísticos, e outros). Esse texto indica acentos claros, ênfases possíveis e ritmos quase “naturais” – dos quais o verso é o exemplo mais imediato: a métrica, e consequentemente a cadência do verso, produzem um efeito de repetição. Este efeito é muito mais evidente se o verso for rimado: a rima prepara e concretiza uma expectativa, fazendo recair o acento sempre nos lugares previamente esperados.
O teatro é feito para ser ouvido. O componente musical do diálogo teatral é uma parte essencial de sua poética [...]. Não se trata somente de um ornamento (verso, rima, etc.), é algo essencial para nossa compreensão do significado do texto: permite-nos ouvir e entender aquilo que, se não fosse por este componente, continuaria a ser apenas da ordem da comunicação funcional. (UBERSFELD, 2002, p.128, tradução minha).
Ainda assim, o leitor, e principalmente o orador (ator, por exemplo) que diz o verso tem livre arbítrio para selecionar acentos secundários, escolhendo, pelo sentido ou pela cadência, quais palavras ele deseja enfatizar. Grosso modo, eu diria como Anne Ubersfeld (op.cit.), que há acentos “inexoráveis”, dos quais não há como fugir, porque foram impostos pelo autor. Mas a distribuição de acentos secundários demonstra a escolha do orador por recortar este e não aquele aspecto do texto, o que fará mudar todo o sentido. Esta é uma lógica tão antiga quanto o próprio teatro: atores diversos farão as mesmas personagens de forma diversa não apenas por suas diferenças psicofísicas, mas por suas diferenças na compreensão da figura e sua interpretação – isto é, por suas diferenças de enunciação.
Numa atitude ainda mais radical, o intérprete pode optar por “sincopar” o acento “natural” – aquele que seria “inexorável” – deslocando a ênfase para um lugar surpreendente. Isso produz uma estranheza no ouvinte, que é “sacudido” em sua expectativa de regularidade. Este procedimento rompe com a regularidade rítmica, e, o mais importante, rompe com a regularidade da lógica do sentido, provocando no espectador o súbito abandono da cômoda sensação de ser capaz de antecipar a progressão da fábula.
Também parece bastante evidente que a distribuição dos acentos é uma das mais importantes atribuições do encenador, já que este é o grande responsável pela construção rítmica global do espetáculo. Para um encenador de razoável sensibilidade rítmica, é fácil perceber, mesmo intuitivamente, que é preciso dispor periodi-camente, ao longo do espetáculo, de momentos de ênfase, de tensão, seguidos por momentos de relaxamento, e/ou de preparação da próxima ação. Estas ênfases podem já estar presentes na condução do enredo – como na construção da “curva dramática”, na alternância de clímax-relaxamento – ou ainda na disposição das palavras, como já foi dito. E, claro, podem ser criadas pela própria encenação, pelo uso da luz, pela dinâmica de movimento, pela alternância de tensão-repouso no corpo do ator e no movimento cênico do grupo. Estas alternâncias vão criar as “atmosferas” da encenação.
Seja pela distribuição de acentos, seja através das durações e das pausas, seja através das intensidades, o fato é que conferir uma dinâmica ao espetáculo implica, necessa-riamente, em criar um jogo de contrastes em seus ritmos. O ritmo em si, não é dinâmico – já que ele só se configura pela repetição periódica de certos eventos – mas suas variações sim. São elas que vão criar, na obra teatral (como na música), os efeitos de tensão ’ soltura, suspense ’ alívio.
Dentre as centenas de definições possíveis para a palavra ritmo, há as que atribuem sua raiz etimológica ao vocábulo grego rhein, que significa fluxo, fluência, e teria dado origem ao termo rythmós. Mas há as que enxergam uma raiz ainda mais antiga, também do grego, rhy, que significa sustar, prender, dar medida, que teria dado origem também aos vocábulos “aritmética” e “número” (Sadie, 1980). Entre estas duas correntes, navega uma convicção de que o ritmo pode ser metaforicamente assemelhado a um rio, cuja fluência ininterrupta é moldada por acidentes, relevâncias, pausas no percurso e, sim, recorrências. Um ritmo constante, imutável, feito por periodicidades repetidas ad infinitum teria, no dizer poético de Eugenio Barba, a consistência viscosa de um leite condensado (BARBA, op. cit.) – que logo enjoa, fazendo divagar a preciosa atenção do espectador. Um ritmo freneticamente irregular carrega uma noção de caos, que não instaura, para a percepção do espectador, nenhum quadro de referência de onde ele possa, confortavelmente, estabelecer suas associações. Isto também não consegue prender sua atenção por muito tempo. Nem o sempre constante, nem o eterno mutante:
o segredo do equilíbrio está na raiz de tantos espetáculos bem-sucedidos.
BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator. São Paulo/Campinas:
Hucitec/UNICAMP, 1995.
BRENET, Michel. Dicionário de la musica. 4a ed. Barcelona: Editorial Ibéria, 1981.
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ªed revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Movimento/INL/MEC, 1973.
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The Compact Edition of the Oxford English Dictionary. 2nd ed. Oxford University Press, 1981.
UBERSFELD, Anne. Reading theatre III – theatrical dialogue. Ottawa/Toronto/ Montreal: Legas, 2002.
Leonardo Boccia1
A construção do Estádio Olímpico de Pequim custou ao governo chinês US$ 500 milhões. O Ninho, como também é conhecido por sua estrutura em aço que reproduz as formas de um ninho de pássaro, tem 91 mil lugares e, em 08.08.2008, por ocasião da cerimônia de abertura de jogos olímpicos de Pequim, é transformado em gigantesco teatro de arena. De acordo com recentes pesquisas, a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Pequim, sob a direção do influente cineasta chinês Zhang Yimou, por sua complexidade e criatividade, sensibilizou mais de 3 bilhões de espectadores-ouvintes em todo o mundo. Neste ensaio, apresento seqüências daquela cerimônia de abertura e discuto pontos de intersecção entre cultura, música e artes cênicas que, durante pouco mais de uma hora, cativaram o público no estádio ninho de pássaro e a audiência mundial com o mais ousado espetáculo cultural da atualidade. Palavras-chave: Espetáculos culturais contemporâneos, Jogos Olímpicos de Pequim, cultura, música e artes cênicas.
The building of Beijing Olympic Stadium cost to the Chinese government US$ 500 millions. The 'Nest' as well as it is known, by its structure in steel that reproduces the forms of a bird nest, has 91 thousand places and, on august 8, 2008, for occasion of the Opening Ceremony of Beijing Olympic Games it was transformed to a gigantic arena theatre. According to recent researches, the Beijing Olympics Opening Ceremony, directed by the influent movie director Zhang Yimou, for its complexity and creativity, has moved more then 3 billions spectator-listeners all over the world. In this essay, I present sequences of that Opening Ceremony and I discuss intersection's points among culture, music and scenic arts that, during a few more than one hour, catch the public in the bird nest stadium and the world audience through the most daring cultural spectacle of the present time. Key-words: Contemporary cultural spectacles, Beijing Olympic Games, culture, music and scenic arts.
1 Doutor em. Artes Cênicas, compositor e professor da Escola de Música, coordenador do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, e professor pesquisador do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.
Talvez devêssemos concentrar a atenção nas estruturas futuristas do Teatro Nacional de Pequim, um dos mais importantes projetos da arquitetura contemporânea e símbolo do renascimento econômico-cultural da China. Admirar sua fachada recoberta por cerca de 22 mil placas de titânio e seu mega-espaço interno, com quase 150 mil m2, que reúne um teatro de ópera com 2.416 lugares, uma sala para concertos com 2.017 lugares e um teatro com capacidade para pouco mais de mil espectadores-ouvintes, além de espaços para exposições de obras de arte. Concebido pelo estúdio francês de arquitetura dirigido por Paul Andreu, sua estrutura externa de forma oval, como uma bolha de sabão que flutua sobre o lago, não possui portão de ingresso convencional, a conexão da praça externa para o interior do Teatro Nacional se dá por um largo túnel transparente de 60 metros, abaixo do nível da água do lago artificial que o circunda. Sua inauguração, em 25 de setembro de 2007, contou com a representação do famoso balé do período da Revolução Cultural: O Destacamento Feminino Vermelho.
Todavia, na sexta-feira dia 08 de agosto de 2008, a representação em um outro espaço de estruturas futuristas seduziu a atenção de mais de três bilhões de espectadores-ouvintes em todo mundo. Adaptado para servir de gigantesco teatro de arena, o Estádio Nacional Olímpico de Pequim, o Ninho, como também é conhecido por sua estrutura em aço, que reproduz as formas de um ninho de pássaro, tornou-se palco da cerimônia de abertura dos 29º Jogos Olímpicos da era moderna. Sua complexa estrutura, concebida pelos arquitetos suíços Herzog e De Meuron, contou com a colaboração do estúdio ArupSport, o China Architeture Design & Research Group e o artista plástico de arte contemporânea Ai Weiwei. Iniciada em 2002, a obra transformou-se em desafio de cálculos e de engenharia e resultou em uma das mais instigantes edificações da atualidade. Para fazer do Ninho um verdadeiro monumento, em todos os sentidos, o governo chinês não poupou gastos e a obra custou cerca de 500 milhões de dólares.
Desde 2001, quando anunciaram oficialmente que Pequim seria a cidade-sede dos jogos olímpicos em 2008, a euforia tomou conta da nação chinesa. Um extático carnaval de comemorações e fogos de artifício selou o acontecimento esperado havia décadas pelos chineses. Com isso, para transformar a capital da China em palco de eventos espetaculares e esportivos, nem esforços nem dinheiro foram poupados. Dois milhões de trabalhadores ergueram a vila olímpica e transformaram a capital Pequim em uma cidade de feições ultramodernas. Entretanto, o investimento de 40 bilhões de dólares, cerca de 63 bilhões de reais, aplicados na infra-estrutura para a 29ª edição dos jogos olímpicos, demonstra não apenas o poder econômico da nação chinesa, mas um contexto histórico inédito, em que a China se defronta com conflitos globais de culturas. Os jogos olímpicos são para a cidade de Pequim, bem como para toda a nação chinesa, a oportunidade, em mega-escala midiática, de mostrar seu recente desenvolvimento socio-econômico e, ao mesmo tempo, abrindo-se para o mundo, a oportunidade de aprender confrontando-se diretamente com a diversidade cultural de outros países. Não há como se expandir em todos os sentidos sem enfrentar as batalhas no campo feroz da cultura.
O que a China manifesta com sua megainfra-estrutura espetacular é uma imagem nacional renovada e pronta para encontro ou para o choque com as diferenças. Por tudo isso,
o Ninho é metáfora de abrigo, acolhimento e proteção da cria de um novo tempo, mas é também palco para o espetáculo de novas culturas híbridas batizado com a estréia da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Pequim. E é desse espetáculo de cultura milenar-contemporânea que reporto neste ensaio impressões, emoções e detalhes revelados pela observação e análise da cerimônia.
Conflitos e tensões nos bastidores da maioria dos espetáculos de representação ao vivo raramente são revelados ao público, assim, antes de descrever a cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Pequim, gostaria de reportar fatos pouco divulgados, detalhes da cultura chinesa e estereótipos recorrentes na mídia mundial. Pela observação atenta, pretendo analisar traços e
Proscênio sentidos espetaculares dessa cerimônia de
abertura1.
Devido à intensidade dos comentários
jornalísticos e, com isso, ao enfraquecimento
de intensidade do áudio original, a transmissão
televisiva da cerimônia de abertura dos jogos
olímpicos de Pequim, para os diversos países,
sofreu alterações relevantes e, em alguns casos
com grandes prejuízos para os espectadores
ouvintes. Os comentaristas das redes
Bandeirantes e Globo de televisão, bem como
de outras redes européias e norte-americanas,
no afã de explicar em detalhes fatos da história
e da mitologia chinesa, mostrados pelo
espetáculo da cerimônia de abertura, reforçando
estereótipos recorrentes e de pouco valor para
China e para a cultura oriental, baixaram
literalmente o nível do espetáculo, que
dispensaria a maioria daqueles comentários, ou
pelo menos, os que poluíram som e imagens dos
momentos mais emocionantes. Foi como se em
uma representação ao vivo em teatro ou durante
uma sessão de cinema alguém estivesse se
dirigindo ao público para confirmar o óbvio,
causando um deslocamento contínuo entre
realidade e ficção. Nos termos de Huizinga: um
verdadeiro estraga-prazer.
Por isso, considero que o espetáculo da
cerimônia de abertura transmitido pelas redes
de televisão do mundo, recebido por mais de
três bilhões de pessoas, chegou a cada espaço
de forma diferenciada e, em alguns casos, com
prejuízos para a expressão artística das diversas
seqüências. Por outro lado, a transmissão ao
vivo, para a maioria dos países, abriu uma janela
na muralha da cultura chinesa e permitiu ver
ouvir outro lado do mundo. Mas, a alta definição
audiovisual da TV digital para a transmissão da
cerimônia de abertura não chegou a todos os
cantos da ‘aldeia global’, aliás, boa parte da
audiência mundial, teve que se contentar com
uma transmissão repleta de ‘fantasmas’ e baixa
qualidade tele-áudio-visiva .
No caso da transmissão pelo canal da TV
Globo, a abertura dos jogos olímpicos de Pequim
foi prejudicada não apenas pelos comentários
redundantes dos jornalistas apresentadores, com
a intensa redução do áudio original, mas pelos
cortes freqüentes que desviaram a atenção do
público e impuseram uma interpretação
tendenciosa e diferente daquela apresentada pelo
canal oficial das Olimpíadas. Nossas observações
e análises se baseiam nas transmissões da
cerimônia de abertura por dois canais de TV no Brasil: TV Globo e TV Bandeirantes, em comparação com o vídeo gravado ao vivo no Ninho do Pássaro pela CCTV, canal oficial da televisão chinesa.
Grande mistério envolveu o espetáculo da cerimônia de abertura até o dia da sua estréia; diversos procedimentos artísticotecnológicos ainda não foram revelados. Sabese que, em 17 de abril 2006, o cineasta Zhang Yimou foi nomeado diretor geral da cerimônia de abertura e de encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Para uma cultura coletivista como a chinesa, unidade e sincronismo de grandes conjuntos humanos podem ser essenciais. Mas, esta questão passa igualmente pela crise que atinge as culturas individualistas dos países ricos. Nelas, a representação da imagem nacional ostentada como a de países livres e confiáveis conta com contínua manipulação midiática de seus fatos e perfis sociais. Uma engenhosa intriga sustentada por poderosas companhias de comunicação a serviço das elites de poder. Nesses casos, a questão não é meramente ideológica – comunismo versus capitalismo, embate simplista e retrógrado –, o que está em jogo é a capacidade político-cultural de produzir o novo, em equipe e para conjuntos cada vez maiores. ‘Um mundo um sonho’, o moto das Olimpíadas de Pequim, aponta para esta capacidade: um sonho sonhado por muitos se torna realidade.
Culturas individualistas cultivam a liberdade individual, sujeitos individualistas podem considerar o sincronismo grupal mera massificação ou símbolo de opressão. Na cultura oriental coletivista, entretanto, uma pessoa tenta ocupar
o próprio lugar em uma rede social. Membros de culturas coletivistas definem seus egos mais
1
É por meio do intercâmbio intercultural com 10 centros de pesquisa e mais 10 centros de supervisão no mundo, que o nosso grupo de pesquisa Espetáculos Culturais Contemporâneos, ligado ao Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia vem estudando os impactos dos jogos olímpicos de Pequim e o comportamento da mídia mundial. Para tanto, a colaboração dos colegas da Universidade de Comunicação de Pequim tornou-se fundamental para comparar dados de pesquisa, receber informações essenciais de culturaespecífica e debater assuntos referentes às recentes Olimpíadas. Sou profundamente grato a Dra Luo Qing e toda sua equipe, em especial modo à estudante Liu Xing, pelo suporte e troca de dados e arquivos audiovisuais e pelo envio do DVD oficial da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Pequim.
provavelmente em termos de interdependência (KÜHNEN, 2007, p.111). Contudo, a dimensão individualismo-coletivismo é um conceito amplo e rico em contradições. Variações e mudanças de comportamento em ambas as culturas dependem de inúmeros fatores. Apesar disso,
o espetáculo da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Pequim evidenciou força e união do voluntariado coletivista e o poder espetacular e de convencimento que a ação sincrônica de grandes conjuntos humanos pode exercer.
Seguindo parâmetros de culturas ocidentais, é muito difícil evitar preconceitos e impressões erradas sobre a cultura chinesa. As relações internacionais são marcadas por contínuos equívocos cometidos pelos países que desqualificam a cultura do outro. De acordo com Alexander Wendt, um dos influentes acadêmicos construtivistas no campo das relações internacionais, nessas relações se destacam três gêneros de cultura: a) aquela, para qual todos seriam inimigos (Hobbes), b) a que substitui a guerra pela competição (Locke) c) e a que defende aliança entre os amigos (Kant). Obedecendo a estes critérios, a união Européia, por exemplo, se inspira em Kant para as questões internas e em Locke para as externas. Enquanto, para as relações internacionais, os EUA se inspiram nas três culturas: para seus aliados de língua inglesa preferem a cultura kantiana; a de Locke em relação às nações européias, e a de Hobbes para outros países, que eles qualificam de falidos e malvados. Uma quarta cultura, pouco conhecida pelos ocidentais, é o princípio fundamental da visão chinesa “tudosob-o-céu”, cujo objetivo principal é transformar um inimigo em amigo. Na cultura chinesa não existe a idéia da luta Deus versus diabo; crentes versus pagãos ou aquela do juízo universal. Para os chineses, a exclusão do outro significa a negação do mundo (TINGYANG, 2008, p.55).
De acordo com Terry Eagleton (2003, p.64), filósofo e crítico literário britânico: cultura, no sentido de religião, nacionalidade, sexualidade, etnicidade etc., é um campo de batalha feroz; de modo que, quanto mais prática torna-se a cultura, menos é capaz de cumprir um papel conciliatório, e quanto mais conciliatória ela é, mais ineficaz torna-se. A expressão “guerras culturais” sugere batalhas campais entre populistas e elitistas, entre guardiões do cânone e partidários da difference. O choque entre Cultura e cultura já não é mais simplesmente uma batalha de definições, mas um conflito global. É uma questão de política real, não apenas de políticas acadêmicas (ibid.2003, p.79).
Mas, a vitalidade das culturas depende tanto da preservação de seus valores como da criação de novos modelos e, por outro lado, do intercâmbio contínuo, no encontro e no
choque com outras culturas, que proporcionam deslocamentos essenciais à expansão do conhecimento e do sentimento.
A cerimônia de abertura dos Jogos
Olímpicos de Pequim deixou uma marca
indelével e não impressionou exclusivamente
espectadores-ouvintes, mais de três bilhões no
mundo, mas as poderosas companhias
transnacionais de mídia, que certamente se
preparam para um contra-ataque e para novas
negociações. No intuito de refletir sobre os
impactos dessas estratégias culturais de
audiovisão, faço, a seguir, um resumo de
algumas das seqüências iniciais da cerimônia de
abertura dos jogos olímpicos de Pequim e, pela
análise de partes do espetáculo, procuro
interseções entre música, artes cênicas e cultura,
que fizeram desse evento espetacular um
laboratório provocante para nossas pesquisas.
Alguns minutos para o início da
cerimônia de abertura, 91 mil pessoas lotam o
Ninho. 2008 grandes tambores Fou2, ordenados
em fileiras, formam dois amplos conjuntos
retangulares e paralelos sobre o piso do estádio
olímpico devidamente forrado. Esses tambores
quadrados Fou são uma versão moderna dos
antigos instrumentos chineses de percussão e
munidos de painéis luminosos ao redor da parte
superior, que se acendem somente quando os
percussionistas batem no centro do próprio
tambor. Poucos instantes antes do início da
cerimônia, já agachados ao lado de cada tambor,
2008 percussionistas se erguem repentinamente;
todos alinhados com incrível precisão. Ensaiaram
durante quatro meses os movimentos sincrônicos
da contagem regressiva, que logo é executada
com perfeição. Neste prelúdio para a cerimônia
de abertura, a densidade dos golpes, os
possantes gritos em uníssono e a sincronia dos
movimentos corporais dos percussionistas
compõem o ritual, que transforma o espaço do
estádio olímpico em templo solene. No entanto,
nessa primeira cena uma revelação: a relação
visual-sonora se dá por dublagem dos figurantes.
Isto é, o som dos tambores e das vozes,
previamente gravado, é distribuído no espaço do
estádio por um sofisticado sistema de
amplificação, privo de ruídos ou zumbidos. Isto
garante não apenas a distribuição equânime e o
controle da densidade sonora no estádio, mas anula problemas com os transmissores ou microfones sem fio, descuidos dos performers, microfonia e erros de execução, além de sugestionar os atuantes e todo o público pelo corpo opulento dos sonidos amplificados. Parece simples, mas a relação visual-sonora deve ser devidamente projetada e é composta de sensíveis ajustes que causam a sensação de verossimilhança fundamental ao espetáculo. Portanto, não se trata apenas de uma amplificação e de um play-back, mas de relações acústicas calculadas exclusivamente para aquele espaço, com conseqüente montagem e distribuição espacial dos equipamentos, transmissores e alto falantes, entre outros detalhes tecnológicos.
A cena seguinte tem sido alvo de críticas por parte da mídia internacional: a voz de Yang Peiyi, pequena cantora de 7 anos de idade, foi dublada por Lin Miaoke de 9 anos de idade. Com inocência e expressão visual, segundo os organizadores, Lin representou melhor a imagem nacional. Chen Quigang, compositor oficial das músicas e diretor musical dos jogos olímpicos de Pequim, afirmou que a expressão de Lin Miaoke emocionou a todos, enquanto a voz de Yang Peiyi é perfeita. Logo, a mídia ocidental tentou tirar proveito desse feito tão comum na maioria das produções audiovisuais. Como era de se esperar, O Globo Online e agências internacionais de notícia, aquelas que defendem os interesses das elites de poder, detentoras da hegemonia audiovisual mundial e, diga-se de passagem, muito experientes e competentes na luta pela manutenção desse poder, em 12 de agosto, quatro dias após a cerimônia de abertura, lançaram a seguinte manchete: “O faz-de-conta das Olimpíadas: cantora falsificada, ‘pegadas’ fake e torcida contratada”. Em uma clara tentativa de distorcer, baixar o nível e aportar máculas para a festa. Desta vez, contudo, não obtiveram eco
2 Feito originalmente de barro ou de bronze, o tambor Fou é o mais antigo instrumento de percussão da China. Percussionistas tocando Fou e cantando simultaneamente, prevaleceram durante a dinastia Xia (ca. 2070 a. C.), primeira dinastia descrita pela historiografia tradicional chinesa, e a dinastia Shang que vai de 1766 a.C. a 1122
a.C. Os tambores serviam originalmente de recipiente para armazenar vinho e outras bebidas. A transformação do jarro conservador de vinho em instrumento percussivo se deu em conseqüência de festividades e comemorações.
suficiente e se afastaram da presa, preocupados com a derrota.
Ao som da canção “Um hino ao meu país”, dublada por Lin Miaoke, em alegre desfile, um grupo de crianças, em trajes típicos das diversas etnias chinesas, atravessa todo o espaço aberto do Ninho do Pássaro, trazem a vermelha bandeira da China. A bandeira é logo passada para oito soldados que, solenemente a levam próxima ao mastro onde será içada, ovacionada por um coro de 224 vozes de cantores de 56 diferentes etnias chinesas. Finalmente, o hino nacional é cantado por todos, enquanto a bandeira é içada para o alto do mastro. Mais fogos de artifício são acionados, não apenas para fora do estádio e na vila olímpica, mas em diversos pontos da cidade; o som possante das explosões sacode o ambiente e afasta tudo que é funesto.
Os fogos se apagam e o timbre de um Guqin recompõe o ambiente acústico do Ninho. Tratase de um instrumento construído há mais de 1000 anos; nesses instantes da cerimônia, solenidade e tradição da música chinesa são sentidas. Com mais de 3000 anos de história, o Guqin é o mais antigo instrumento de cordas da humanidade. Logo, no imenso telão do estádio, é apresentado um vídeo que mostra a histórica invenção do papel e formas de caligrafia dos milhares de ideogramas da língua chinesa. A música e os instrumentos musicais da tradição oriental têm papel de destaque na cerimônia de abertura e remetem à complexidade histórica e espiritual da cultura chinesa. Enquanto a última cena do vídeo mostra um pergaminho se fechando, com os dois lados rolando para dentro, no centro da arena do Ninho, um enorme pergaminho eletrônico no chão, parece desenrolar abrindo espaço para um telão de proporções gigantescas, 22 metros de largura e 147 metros de cumprimento, para a projeção de imagens digitais. No centro dele, uma enorme faixa de 20 metros de cumprimento e 11 metros de largura simbolizando uma folha de papel. Em solenes e pausadas melodias ao Guqin, um experiente instrumentista marca o ambiente de contemplação e de surpresa que envolve todos os espectadores-ouvintes. O músico está dublando, uma gravação que talvez ele mesmo fizera, os sonidos têm impressionante qualidade de gravação e reprodução e não apresentam alguma oscilação ou mínima hesitação.
Dançarinos atuam em sensível coreografia e deixam sobre o ‘papel’ traços de um antigo desenho, o quadro é içado e, assim como para os aros olímpicos, é levado às alturas. Tudo isso, sucede sobre o telão do qual são projetados símbolos da cultura, e escorrem vagarosamente figuras, objetos e imagens da história e da mitologia chinesa. Agora, a música que completa as imagens não é mais a do Guqin, mas a trilha sonora para um filme de ficção, sons sintetizados e profundos efeitos percussivos. O desenho é puxado para o alto, na música se intensificam os golpes, a luz é apagada e o público delira em aplausos emocionados.
Graves golpes de tambor introduzem a próxima cena. De repente, 3.000 figurantes estão na arena, alinhados em ordem surpreendente. Representando os seguidores de Confúcio, caracterizados por um figurino exuberante, de largas saias escuras e bem claras na parte inferior, assim que parecem estar iluminadas por debaixo e com longas plumas na cabeça, todos avançam impávidos. Suas vozes em uníssono reforçam a solenidade dos movimentos, o grupo divide-se primeiro em dois e, em seguida, em quatro segmentos quadrados, nos quatro cantos do telão central aberto no meio. Uma voz austera anuncia e o coro responde, enquanto a percussão literalmente sacode o Ninho. No meio da arena surge do fosso central uma estrutura composta por caixas alongadas, sobre cada uma delas, um ideograma chinês. O coro dos discípulos de Confúcio continua denso, assim como os intensos golpes de tambor. Então, o painel central composto de caixas ondula como um campo de espigas ao vento. O público vai ao delírio, tudo parece ser controlado eletronicamente, os movimentos de ondulação são perfeitos. Dessas caixas ondulantes, algumas sobressaem-se e formam ideogramas chineses, entre eles He que representa harmonia, tudo se completa com o coro possante e os intensos golpes nos tambores. Os blocos ondulantes simbolizam os tipos móveis da impressão, inventada pelos chineses no século VIII e são magistralmente articulados por 897 figurantes que se encontram dentro deles. A amplificação do som é impressionante. A oração, os golpes intensos dos tambores, o coro dos figurantes cercam a cena de fora para dentro. A distribuição sonora no estádio não deixa dúvida, a montagem imagemsom é como para um filme e a arena do Ninho um audiovisual sem tamanho. Só nesta cena,
Proscênio quase quatro mil pessoas atuam simul
taneamente, os sons por eles emitidos se não
amplificados não alcançariam o público em
todos os cantos do estádio e, no caso de
amplificação individualizada, o movimento
dos atuantes já não seria o mesmo.
Enquanto os 3000 discípulos de
Confúcio se retiram, um estrado com quatro
animadores e quatro marionetes
representando a ópera chinesa é trazido
rapidamente para dentro da arena por
dezenas de figurantes que o transportam em
seus ombros.
Novamente as luzes são apagadas, os figurantes se retiram rapidamente e o centro da arena é iluminado para apresentar o quadro seguinte. No gigantesco telão estendido no chão da arena, são projetadas belíssimas paisagens chinesas. Uma jovem dançarina trajada com rico figurino de seda, agitando no ar duas faixas de tecido, aludindo a era da “rota da seda”, é transportada por dezenas de figurantes sobre um amplo tapete que eles elevam com cajados, enquanto a jovem dança e agita no ar as faixas de seda verde. Música
de traços
Músicos
orientais ecoa
instru
no Ninho. O
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Centenas de
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em trajes dou
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imagens espe
dam o palco
taculares.
das marionetes fazendo evoluções e posicionando-se ao redor do estrado, em quatro filas que formam um quadrado vazado. A apresentação termina em pouco mais de 3 minutos com uma exclamação de louvor dos figurantes que se agitam em torno do palco móvel. A atuação dos músicos e dos figurantes é tão precisa que nada parece ser dublado. Mas como seria possível ouvir as vozes dos figurantes sem microfones e distribuir com tanta intensidade
o som dos instrumentos: estariam microfones invisíveis pendurados sobre aquela multidão? A captação do som original da performance musical ao vivo oferece riscos contínuos, microfones na arena captariam igualmente os ruídos de todo o ambiente. A perfeição da cena é então garantida pela trilha sonora, sua qualidade de gravação e pelas sofisticadas técnicas de reprodução e de distribuição espacial.
Milhares de
figurantes trajados de azul marinho entram na arena armados de longos remos coloridos.
Nesta cena, o tema da navegação trans-forma o palco em oceano. São imagens fortes, em que o sincronismo dos movimentos e dos longos remos agitados por centenas de pessoas cria padrões de imagens e figuras impressionantes. Uma trilha sonora digna dos melhores épicos cinematográficos funde-se aos movimentos. Em todo o anel superior do Ninho são projetadas imagens de vigorosas ondas marinhas. Os homens-remo desenham o espaço, fazem referência às navegações do almirante Zheng He, que comandou navios gigantescos durante a dinastia Ming, tendo chegado às costas da África. No centro da cena, um jovem ostenta uma antiga bússola, inventada pelos chineses por volta do ano 2000 a.C. A música orquestrada e as vozes sintetizadas sustentam a grandiosidade desse navio imaginário. A antológica cena chega ao fim e o público do Ninho vai novamente ao delírio.
Gostaria de descrever em detalhes as demais cenas e quadros que se seguiram na arena do Ninho, mais de dez novas criações cênicas e audiovisuais com a movimentação de milhares de atuantes, dançarinos, atores, músicos e o apoio técnicos de centenas de pessoas envolvidas nas diversas funções nos bastidores. Mas, o espaço para este ensaio não pode e nem deve ser do tamanho do Ninho de Pequim. Para assistir à cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de 2008, com a qualidade de som e imagens suficiente para degustar o espetáculo, livre dos comentários dos jornalistas, a gravação original da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos, realizada pela rede chinesa CCTV, pode ser adquirida pela Internet.
Na maioria dos casos, a música para cena precisa ser preparada para as condições da atuação ao vivo. Contudo, espaço, tempo e contexto do evento prevêem padrões distintos que podem fazer do espetáculo algo surpreendente ou resultar em prejuízos para a trama, o texto, os atores e finalmente para o público. Recentes avanços tecnológicos e pesquisas no campo da acústica e da eletrônica têm abalado as tradicionais noções de música para a cena. A cultura audiovisual conquistou não apenas o público jovem. Técnicas de gravação imagem-som, armazenamento de dados e sofisticados cálculos de acústica junto a equipamentos de distribuição espacial do audiovisual, deslocam imagens e som em todas as direções. A técnica holográfica, por exemplo, faculta projetar imagens tridimensionais para além da tela. Enquanto parâmetros sonoros convencionais como reverberação, eco, delay e técnicas mais recentes de circulação espacial dos sonidos (Surround e Dolby Digital) aportam às imagens em movimento e ao imaginário dos espectadores/ouvintes uma dimensão de tempo-espaço que elas não teriam se representadas desconsiderando as relações de composição cênico-sonora da atualidade. O resultado disso é a convivência de padrões criativos convencionais e ultramodernos, assim como aqueles apresentados durante a cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Pequim. Na ocasião, o espaço do Ninho fixou limitações e regras para o jogo, ou melhor, para os jogos audiovisuais. Em primeiro lugar, reunindo mais de 15 mil voluntários para o espetáculo, a China festejou a cultura coletivista. Em seguida, mostrou um arsenal tecnológico com milhares de aparelhos eletrônicos que regularam as coreografias e os movimentos em massa dos figurantes. Para a cerimônia de abertura, o cineasta Zhang Yimou fez da cultura e da tradição cênicomusical chinesa o fio condutor do espetáculo. Para tanto, não foram poupados recursos financeiros nem humanos. A transmissão do evento pelos canais de TV em todo o mundo sensibilizou mais de três bilhões de pessoas, mas os comentários, às vezes emocionados dos jornalistas, poluíram a transmissão e modificaram o nível de recepção do espetáculo. O vídeo original gravado pela rede de televisão CCTV da China apresenta a cerimônia de abertura em alta definição audiovisual. Todavia, a gigantesca audiência mundial, apesar de emocionada com a cerimônia, teve que imaginar o evento para além das limitações da transmissão televisiva. A análise das transmissões em comparação com a gravação original permitiu tecer uma rede de reflexões sobre Artes Cênicas na contemporaneidade. O intercâmbio intercultural com colegas da Universidade de Comunicação de Pequim revelou assuntos específicos de cultura e detalhes essenciais na troca de informações e arquivos digitais.
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LIBERATO, Chico. Boi Aruá. Brasil, 1984. (desenho de animação)
Cantiga do BoiEncantado e outrascenas operísticas, deElomar Figueira Mello
Simone Guerreiro1
Trata-se de leitura crítica da Cantiga do Boi Encantado, do compositor baiano Elomar Figueira Mello, gravada no disco Sertania, de Ernest Widmer, trilha sonora do desenho de animação Boi Aruá, de Chico Liberato. A canção e as obras citadas recriam um romance popular cujo tema gira em torno do périplo do vaqueiro no sentido de dominar e pear a figura misteriosa e fantasmática do boi encantado. O motivo reaparece noutras peças musicais do autor que compõe densas imagens de um sertão mágico e fantástico. Palavras-chave: Cantiga do Boi Encantado; Elomar Figueira Mello; poéticas do sertão.
This is a critical reading of the Song of the Enchanted Bull, by the poet and composer Elomar Figueira Mello, born in Bahia, recorded in the disc Sertania, by Ernest Widmer, used as sound track of the animation film Boi Aruá, by Chico Liberato. The song and other pieces recreate a folk story whose
1 Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia, autora do livro Tramas do Sagrado: a poética do sertão de Elomar (Salvador: Vento Leste, 2007)
theme is the wanderings of a cowboy who tries to subjugate and tame the mysterious and ghostly figure of the enchanted bull. The musical theme appears in other pieces by the author, that together compose dense images of a magic and fantastic backland. Key-words: Cantiga do Boi Encantado; Elomar Figueira Mello; poéticas do sertão.
O romance do boi encantado é uma
narrativa popular do sertão brasi-leiro com
mar-cas do imaginá-rio medieval heróico e
guer-reiro presente nos antigos ro-mances de
ca-valaria. Trata-se de um relato fantástico so
bre um boi in-domável, que não se deixa ferrar,
cuja tradição tem início nas áreas rurais do
Brasil, mais precisamente, no período do ciclo
do gado, entre fins do século XVIII e início do
século XIX. O tema é retomado pelo
compositor baiano Elomar Figueira Mello,
especialmente, na Cantiga do Boi Encantado
e em duas cenas da ópera O Retirante
apresentadas, em 1998, no concerto Cenas
Brasileiras e publicadas no Livro do Concerto.
As imagens míticas e insólitas relacionadas à
figura do boi encantado constituem uma trama
a ser lida no sentido de compor um quadro
representativo da diversidade da cultura
brasileira. Embora algumas delas sejam
comuns na fábula sertaneja, a singularidade
com que são configuradas aponta, de
imediato, para uma geografia e linguagem
específicas: das margens do Rio do Gavião, no
interior do semi-árido da Bahia, região da
Serra da Carantonha, próxima à Chapada
Diamantina, município de Caetanos, locus de
criação do compositor Elomar.
“O boi tece a renda...”. Componho essa
alegoria para ilustrar como o motivo citado é
recorrente nas canções de Elomar. A figura do
boi encantado é a que borda o tecido cujos fios
são urdidos pelas tramas do sagrado. A renda é a
representação da poética de Elomar, emara
nhada nas lendas e mitos das tradições popula
res, cristãs e pagãs do sertão brasileiro. Destaco
o tema boi encantado pela insistência com que a canção popular, a literatura de cordel, o romance tradicional, a literatura oral e a canônica o narram, demonstrando a sua importância na cultura brasileira; e pelo fato de ter inspirado o de-senho animado de longa-metragem Boi Aruá (Brasil, 1984), com dire-ção do artista plástico baiano Chico Liberato, para o qual foi composta a Can-tiga do Boi En-cantado, de Elo-mar.
Qualificado de “aruá” – do tupi “arruá” (sel-vagem, bravio) –, o boi encantado é de espécie fantástica e numinosa. No romance1 de tradição oral, é conhecido também como surubim, mandin-gueiro e misterioso, entre outras denominações, em decorrência das qualidades extraordinárias e natureza feroz. O motivo principal do romance popular refere-se à jornada do herói-vaqueiro na tentativa de derrubar, pear e dominar a rês encantada. Mas a transposição do desafio beira os limites do impossível, vez que o animal, nascido de vaca feiticeira, tem habilidade e destreza fantásticas e nem mesmo vaqueiros célebres e honrados conseguem alcançá-lo, feito que poderá ser logrado somente por um vaqueiro de características sobre-humanas, qualidades guerreiras e possuidor das faltas e atributos do herói grego. Raymond Cantel (1993) observa semelhanças entre a lenda do boi aruá, os cantares de gesta franceses do ciclo carolíngio e os romances de tradição ibérica, cujas narrativas chegam ao Brasil através da colonização portuguesa. Os caracteres sobrenaturais do herói-vaqueiro destemido, com o nobre e célere cavalo, são rela-cionados às qua-lidades atribuídas aos heróis carolíngios e suas façanhas extraordinárias.
A lenda do boi indomável perdura no imaginário do serta-nejo, motivada sobretudo, pelo difundido cordel do poeta popular Leandro Gomes de Barros (1868-1918), Estória do Boi Misterioso, cuja literatura constitui, entre o final do século XIX e início do século XX, leitura indispensável no sertão do Brasil. Os cordéis de Lean-dro Gomes de Barros, lidos com fervor e admiração por sertanejos, cangaceiros, feirantes e vaqueiros, popularizam-se, são decorados e divulgados, ainda, pelos cantadores nordestinos,
1 Entende-se aqui por romance “uma composição de manifestação linguístico-discursiva, de natureza poética (algumas vezes acompanhada de música), com uma organização semântica narrativodramática, altamente variável (versões e variantes) em ambas as suas componentes textuais (na expressão e no conteúdo), e que, situada na literatura oral tradicional, se insere no extracontexto da vida social quotidiana de uma comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de lazer)”. In: João David Pinto-Correia, O essencial sobre o romanceiro tradicional, 1986, p. 8 - 9. Essa definição é ampliada em publicação posterior, na qual o autor diferencia o “romance tradicional” do “romance vulgar” e da “cantiga narrativa”, de origem mais recente. Cf. João David Pinto-Correia, O Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, 2003.
conforme Câmara Cascudo (2000). A literatura de cordel foi, desse modo, veículo para difusão do romance, numa dinâmica através da qual a escrita popular acrescenta novos elementos para as “poéticas da voz”, como as define Paul Zumthor (2000)2, e essas continuam a fazer interferências, recriando, atualizando o mito.
Contudo, não é unicamente para o cordel que o romance popular empresta matéria para invenção. Na arte de novos criadores, ele persiste fragmentado, remodelado, a exemplo: O Boi aruá, livro infanto-juvenil de Luís Jardim, publicado em 1940; “Romanço do Boi Bonito”, na no-vela “Uma Estória de Amor – Festa de Manuelzão”, de Guimarães Rosa, publicada em Corpo de Baile, em 1956; Boi aruá, desenho animado de 1984, diri-gido por Chico Liberato; Sertania – Sinfonia do Sertão, opus 138, para voz, violão e grande orquestra, com participação da Orquestra Sinfônica da UFBA, de Ernst Widmer3, disco composto para a trilha sonora do desenho animado citado, no qual foi gravada a canção-tema, Cantiga do Boi Encantado, de Elomar.
O filme Boi Aruá trata da lenda do boi misterioso e encantado que nenhum vaqueiro consegue pegar e traz para a cena cultural brasileira vozes e imagens do ser-tão: o sertanejo como persona-gem principal, o dialeto, gestos e valores. Molda-do a partir de uma visão da arte plástica, tra-balha com ele-mentos do cor-del de Leandro Gomes de Bar-ros, registra his-tórias e cantos tradicionais rela-cionados à figu-ra do boi, traz motivos presentes no livro infanto-juvenil de Luís Jardim, além de inovações no roteiro, composto por Chico Liberato e Alba Liberato.
“O boi chora, eu já vi chorar!”. Essa fala sintética inicia a história do boi que será tecida e aponta para dois aspectos: o primeiro diz respeito ao elemento extraordinário que simboliza o choro do boi e o segundo valida a afirmação a partir do experienciado, do que foi visto. Inicialmente, apresenta o principal tema, o boi, e os gêneros aos quais irá recorrer: o fantástico e o mara-vilhoso. Nessa versão, o herói é o rico fazendeiro Tibúrcio. A jornada empreendida por ele em busca de pegar o boi aruá consiste em vencer sete desafios que se desenrolam numa dramaticidade progressiva até atingir o clímax, após o qual a harmonia é restabelecida. Inicialmente, o fazendeiro Tibúrcio vive um momento de apogeu financeiro.
Entretanto, a
riqueza inspira
lhe sentimento
de orgulho, po
der e arrogância,
constituindo
sua hybris, sua
desmedida,
responsável pela
queda do herói,
como na tragé
dia grega. Num
quadro pendu
rado na parede,
com uma foto
do fazendeiro,
comum na casa
sertaneja, vê-se escrito o lema: “Eu por primeiro, os amigos por derradeiro”, símbolo do egoísmo e centramento na individualidade. O boi aruá aparece – para provar Tibúrcio – justamente nessa altura, além do limite da cancela, fronteira que divide o espaço profano, o domínio do humano, do espaço sagrado, desconhecido, extraordinário. Desde então, os materiais para a subsistência de toda a gente da região começam a faltar. A cada novo desafio, a escassez aumenta, o que é entendido pela comunidade como um sinal, um presságio, relacionado ao aparecimento do boi misterioso, por isso o associam ao demônio.
Para vencer o boi aruá, superar o gênio daninho, restaurar a harmonia social e a fartura econômica, o fazendeiro empreende, sozinho, os
2 Paul Zumthor, em Performance, recepção, leitura, estabeleceu uma diferença entre oralidade e vocalidade, enfatizando a importância da performance, da presença ativa do corpo e da voz, no depoimento de narradores das tradições orais, a exemplo dos repentistas brasileiros, denominados de “praticantes da voz“. 3 Ernst Widmer, músico suíço radicado na Bahia, interessado pelo folclore musical brasileiro, fez, em Sertania - Sinfonia do Sertão, citações de canções populares – aboio, puluxia, cantiga de roda – e também da Cantiga do Boi Encantado, de Elomar.
Proscênio seis primeiros desafios, todos frustrados,
chegando a cair numa cama de macambira,
planta comum nas regiões de seca, ficando com
todo o corpo espetado por espinhos. A
comunidade vê o acontecimento trágico como
outro sinal, indicando para que ele desista da
tarefa. O desaparecimento do boi numa gruta,
no quinto desafio, dá a Tibúrcio a ilusão de tê
lo vencido. Mas as duas máscaras – que
representam uma espécie de subcons-ciente do
fazendeiro – avisam-lhe o contrário: “O Boi não
morreu!”, para as quais responde Tibúrcio,
tentando convencer-se: “O boi morreu!”.
Promove, assim, uma festa profana para
comemorar a morte do boi e para os convidados
narra uma história fantástica: “Era um boi
brabo, grande! O lugar era uma loca, uma grota,
uma escuridão… Parecia o oco do mundo!
Ninguém andava por ali. […] Se ele morreu eu
não sei! Sei que eu estou vivo!”.
A escassez, por conseguinte, insiste e a família
desestrutura-se, com a saída de casa da afilhada,
raptada por um vaqueiro, com quem se casa, o
que constitui uma afronta aos padrões machistas
e patriarcais da cultura sertaneja. Necessário faz
se, então, um sexto desafio, o mais dramático e
de cores sombrias. A família de Tibúrcio
preocupa-se com a saída do patriarca, já que seu
retorno é duvidoso. Cito falas expressivas da
tensão que constitui esse desafio: o conselho da
esposa (“Vá, mas deixa o orgulho, filho de Deus!)
e o pedido do filho (“Vai não, pai, deixa o boi pra
lá!”). Irritado, contudo, lhe responde Tibúrcio:
“Se aquieta, menino, tá me arrenegano?! Tá me
esconjurano?!”. A saída é vista por todos como
insistência vã, teimosia, e toda a comunidade fica
mobilizada diante daquela atitude.
Novamente, o fazendeiro entra na gruta onde
o boi dissipara-se, caracterizada no desenho como um túnel, no qual figuram a imagem do diabo, do saci, estrelas, luas, uma coruja e espécies sobrenaturais e fantásticas. Mas ainda não é dessa vez que consegue laçá-lo, porque, após metamorfose, o boi desaparece, ficando o fazendeiro em profundo desapontamento e tristeza. É nesse momento que surge uma velha sertaneja, modelo de vidente e feiticeira – com função similar à do ajudante mágico dos contos de fadas – e lhe indica o caminho para alcançar a vitória, prenúncio de término favorável para Tibúrcio. Segundo a fala da feiticeira, quem alcançar o boi será destacado como herói, provedor do povo, capaz de restaurar a harmonia social, familiar e econômica, no entanto, com auxílio e misericórdia de Deus, aquele que verdadeiramente provê:
Ô Tibúrcio, meu filhinho, o que é que você tem que está tão judiado, tão esquilangado nessas montanhas? Tenha fé em Deus e paciência que você pega o bezerrinho. Quem pegar este bezerrinho tem tudo o que é bom e muita grandeza e muito gado no curral para enricar igual às estrelas no céu, comparando e igualando com as aves do campo, tem mandioca se Deus quiser e mandar misericórdia. Tem tudo que é bom, toda grandeza de roça e toda a grandeza para o povo se manter com os poderes de Deus e a força da misericórdia do céu.
Agora, porém, a situação de penúria chega ao limite, não mais restando uma gota de água nas fontes, configurando uma situação caótica para a comunidade, como é dito na fala de um dos vaqueiros da fazenda: “E agora, S. Tibúrcio? Acabou palma, capim, os gado tão morreno de sede, o que se vai fazê?”. Chega à região outros bravos vaqueiros para a cavalhada, encourados, preparados para o combate, armados de lanças ornamentadas com bandeirolas, nas quais estão inscritos os emblemas dos grupos participantes do folguedo. Nesse momento, a canção de Elomar
– Cantiga do Boi Encantado – é inserida, sendo cantada por um deles, ao aproximar-se da chegada à fazenda de Tibúrcio:
Ê Ê Ê Ê Ê Ê... boi incantado e aruá Ê boi, quem havéra de pegá! Na mia vida de vaquêro vagabundo Já nem dô conta dos pirigo qui infrentei Apois das nação de gado qui hay no mundo Num tem um só boi qui num peguei [...] Eu vim de longe, bem pra lá daquela serra Qui fica adonde as vista num pode alcançá Ricumendado dos vaquêro de mia terra Pra nessas banda eles nóis representá Alas qui viemo in dois eu e mais Ventania O mais famado dos cavalo do lugá Meu sabaruna rei do largo e do grotão Vê si num isquece da premeça qui nóis feiz Naquela quadra de ferra laço e moirão Na luz da tarde os olhos dela e meu cantá A mais bunita de Brumado ao Pancadão Juremo a ela viu ti pegá boi aruá [...] De indubrasil nerol’ xuite guadimá Moura junquêro pintado nuve e alvação Junquêro giz peduro landrêis malabá Pintado laranjo rajado lubião Boi de gabarro banana mocho armado De curralêro ao levantado barbatão De todos boi qui hay no mundo já peguei Afora lá ele qui tem parte cum cão O tal boi bufa cum este nunca labutei E o incantado qui distinemo a pegá Pra nóis levá pras terra daquela donzela Juremo a ela viu te levá boi aruá Ê Ê Ê Ê Ê Ê... boi incantado e aruá Ê boi, quem havéra de pegá!
A Cantiga do Boi Encantado esboça a fala de um vaqueiro de vida errante, nômade, a vaguear além do domínio das cercanias, enfrentando perigos sem conta e lidando com todos os tipos de bois, os quais enumera em grande listagem: do curraleiro ao alevantado e barbatão (rês bravia, criada no mato). O vaqueiro vem em busca do combate no que constitui a maior empresa do vaqueiro: desafiar o boi encantado e aruá. Canta o aboio, melodia lastimosa e ecoante, a chamar o boi encantado. A canção de Elomar inscrevese num tempo mítico e o dialeto persegue esse passado imemorial: “Alas qui viemo in dois eu e mais Ventania”. Embora tenha como suporte o sertão histórico e geográfico, busca transpô-lo, inscrevendo-o em geografia encantada e fantástica: “eu vim de longe bem pra lá daquela serra/ qui fica adonde as vista num pode alcançá”, geografia impossível, uma “quadra perdida”, o que confere dimensão sobrenatural ao vaqueiroherói. A prova de valentia, que constitui pegar
o boi, é também um testemunho de amor, porque a vitória fora prometida a uma donzela, a mais bela de toda a região, num instante fixado na memória do vaqueiro, expresso em imagens condensadas pela síntese da lírica: “naquela quadra de ferra laço e mourão/ na luz da tarde os olhos dela e meu cantá [...]”. O personagem aproxima-se do modelo do cavaleiro andante, herói medieval, com sua lança a combater nas justas, não lhe faltando, certamente, o nobre e afamado cavalo, de nome altissonante e pomposo: Ventania.
A canção de Elomar é introduzida no desenho animado, unicamente, no momento da chegada dos cavaleiros, vindos para a cavalhada. Isto explica o fato de ela deixar em aberto o fim da narrativa, quando é revelado o vaqueiro vitorioso, aquele que consegue pegar o boi aruá. Chegando na fazenda de Tibúrcio, os combatentes arrancham durante a noite na casa do fazendeiro e partem ao amanhecer do dia em busca do boi encantado, sendo este o sétimo desafio. Cansado e triste diante daquela situação de desordem, Tibúrcio expressa sua dor com lágrimas que simbolizam uma mudança de atitude, antes impossível para um homem de natureza arrogante. Pedidos de clemência, orações, ladainhas e uma breve chuva cai no sertão, epifania da natureza, sinal de possível trégua com os homens. Porém, é para Tibúrcio que o boi aruá vai se apresentar e, nesse momento, ele é tomado
por uma força e autode-terminação que o fazem investir, em seu cavalo, na corrida para pegar o boi. Outra vez, entra numa gruta, num túnel que parece não ter fim, mas agora consegue vencer os vultos, os fantasmas, as imagens diabólicas da consciência, projeção das suas angústias, dos seus medos.
Em seguida, o boi revela-se, através de metamorfose, um bezerro inofensivo, após Tibúrcio conciliar-se à natureza, abandonando a pretensa idéia de superioridade diante do poder do numinoso. Ao pegar o bezerro, chove no sertão, as plantações florescem e o desenho representa a cena com luminosidade e colorido, momento catártico de purgação do elemento maligno, representado na figura fantasmática do boi. A ordem é reinstalada na comunidade, a família novamente se reúne, inclusive a afilhada fugida, com marido e filho. Assim, retorna o tempo de prosperidade e a inscrição
no quadro pendurado na parede é alterada:
“Os amigos por primeiro, eu por derradeiro.”
O desenho animado Boi Aruá apresenta
um amplo panorama da cultura sertaneja: a
vestimenta do vaqueiro, a alimentação, formas
de trabalho e subsistência, o problema da seca,
a festa de São João, as relações entre fazendeiro
e vaqueiro, os valores de família, os antigos
raptos de noivas, a socialização propiciada pela
feira, a religiosidade popular. Entre os ícones
religiosos, encontram-se: um desenho da Virgem
Maria com Jesus no colo, pendurado na parede;
um oratório, com velas, imagens de santos
católicos, a de Jesus crucificado e, no centro,
em destaque, a de Padre Cícero, líder religioso
canonizado pelos sertanejos do Ceará e
cultuado em todo o Nordeste brasileiro. É
evidente a influência exercida pela moral
judaico-cristã na cultura sertaneja,
representada no filme através da luta entre as
forças contrárias do bem e do mal e da vitória
como expiação dos pecados e culpas. A figura
do pai – constituindo o poder cerceador – é a
autoridade máxima, devendo dar provas de
macheza. Mas esses elementos machistas da
cultura sertaneja serão deslocados, com a
mudança de atitude do pai, que deixa de
exercer domínio e mando arbitrários,
integrando o que antes rejeitava por não se
enquadrar no código moral conservador.
A temática do boi encantado é
retomada por Elomar em Boca-das-Águas,
segunda cena da ópera O Retirante, publicada
em Livro do Concerto Cenas Brasileiras, em
1998. A ópera trata da história de um
pequeno fazendeiro que empenha a fazenda,
vidro ou invisível). A partir disso, trava-se uma batalha entre o boi e o fazendeiro, inicialmente, armado com facão! O duelo, entretanto, é empreendido contra as figuras do próprio imaginário, alucinado com a iminência da desvalia. O fazendeiro atira-lhe imprecações, amaldiçoa-o e o vê como figura diabólica:
A. DA MORTE – Que vida, que esperança Que triunfo, que amor?!
FAZENDEIRO – Êh! quem é tu, quem é lá?! Alguma alma penada que no céu num pôde entrá?
A. DA MORTE – que vida, que esperança que triunfo, que amor?!
FAZENDEIRO – Eu te arrêquero... latumia do raivoso sombração da mêa-noite arte do famaliá60 latumia do raivoso arte do famaliá...
-Será o isprito do boi de vidr’?!
A. DA MORTE – Será?! FAZENDEIRO – As alma do boi pintado?!
A. DA MORTE – Será?! FAZENDEIRO – O isprit’ do boi surubin?!
A. DA MORTE – (irônico)
-Será?!
ô as alma do boi encantado?! FAZENDEIRO – Será?! (referindo-se ao facão)
qui quero co’ esse na mão? ói eu errado ói eu in erro num é qui tô fazen’ asnêra! boi só se pega cum pitêra pau-de-ferro ô cum ferrão êh ê ê ê ê ê boi!4
“Dança de Ferrão”5, peça camerística sinfônica para violão, flauta transversal e orquestra, constitui a conclusão da segunda cena da ópera citada. Trata-se de um longo combate do fazendeiro com o Anjo da Morte ou boi encantado, trocando o facão pela vara de ferrão. Composta para ser coreografada por um dançarino-vaqueiro, remete para a antiga tradição sertaneja – hoje menos expressiva – da pegada de boi com vara de ferrão, nas festas de apartação, nas vaquejadas, nas quais eram narradas histórias de vaqueiros célebres e seus intrépidos cavalos, conforme Câmara Cascudo
4 Livro do concerto Cenas Brasileiras, projeto Cancioneiro e Lírica, com direção geral de Elomar e regência de João Omar de Carvalho Mello. Impresso na Brasil Artes Gráficas, em 1998. 5 Apresentada no concerto de Elomar Cenas Brasileiras, projeto que percorreu várias cidades brasileiras, em 1998.
(2000). Durante toda a noite, o fazendeiro esforça-se para dominar o boi invisível, porém, ao amanhecer o dia, aquela imagem fantasmática se dissipa. Isso significa a vitória do Anjo da Morte sobre o fazendeiro e a confirmação dos malditos presságios: a seca, a perda de todos os bens, a posterior retirada dos sertanejos, a desagregação da família dispersa na cidade grande e todos os outros eventos trágicos decorrentes desse acontecimento.
História de Vaqueiros, canção de Elomar que também faz referência à pegada do boi com vara de ferrão, é uma homenagem à figura do bravo vaqueiro nordestino e foi gravada no álbum Na quadrada das águas perdidas, de 1978. Nela, entrelaçam-se a brincadeira da pegada do boi, a morte e o amor, elementos que, associados, vão compor a cena trágica. Cito um fragmento do texto:
[...] derna o tempo de minino
fazia pur brincadêra
pegá bicho remeteno
de mão pilunga ô pitêra
dentro da venda em descursão
entrô os vaquêro de lá
pruns olhos bunito cum ferrão
pulô a cerca Bragadá
a noite intêra bebeu dançô
na brincadêra nu Tomba Virô
moça bunita laço de amô
pelo triz de um momento
da peleja in certa altura
viu nos olhos da morena
ispelhada u’a mancha iscura
faca na venta o boi morreno
Bragadá caiu no chão
cum o vazí rasgado ’stremeceno
parava o saingue c’as mão
amô nun sei pru modi quê
facilitei olhei você
foi pur teus olhos pur a fulô
pegava o boi boi me pegô
é dura a sorte do pegadô
morrê da morte chifrada amô [...]
E o boi continua a tecer a renda... Embora transfigurado na imagem do Diabo cristão por necessidade de personificação do mal, que deverá ser combatido, não se restringirá a essa face. As produções sobre o romance do boi encantado aqui analisadas são poéticas restauradoras que atualizam o mito como potencial simbólico de fundamental importância para repensar a identidade e a cultura brasileiras. O homem do sertão, profundamente religioso, observa nos elementos do mundo “natural” e profano – como
o boi, o cavalo e o próprio homem – manifestações da sacralidade, atribuindo-lhes poder extraordinário. No caso em estudo, o mito, com função moralizadora, expressa a necessidade do homem de reconciliar-se com a natureza, que deteria o verdadeiro poder, e isto supõe prescindir da exaltação do “eu”, do indivíduo, uma mudança radical na postura diante da vida e do mundo. Essa dinâmica evidencia-se na última fala do desenho animado Boi Aruá: “Mãe, é verdade que foi meu avô quem matou o boi aruá?”, que representa as gerações futuras voltando-se para
o mito, mas também questionando sua historicidade e validade.
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Resumo
Este ensaio mostra aspectos do Samba como: sua história, os tipos de Samba e em que circunstâncias foram se desenvolvendo até o gênero tornar-se uma das mais significativas manifestações sócio-artísticoculturais do Brasil. O tema em pauta é vasto e controvertido na elucidação de seus elementos constitutivos. Muitos estudos já foram realizados por grandes pesquisadores da música brasileira, como Mário de Andrade, Câmara Cascudo, José Ramos Tinhorão, porém, ao se falar de Samba, certos aspectos ainda não se tornam claros, como o seu surgimento, o uso do termo e sua evolução como fenômeno da cultura musical brasileira. Palavras-Chave: Samba - História - Música Brasileira
This essay shows aspects of Samba such as: its history, the kinds of Samba and in which circunstances they developed until the genre became one of the most meaningful social, artistic and cultural manifestations of Brazil. The theme in question is vast and controversial in the understanding of its constitutive elements. Many prominent scholars of Brazilian music such as Mário de Andrade, Câmara Cascudo, José Ramos Tinhorão have already contributed significantly to the theme, however there are certain aspects of Samba, such as its appearance, the use of the term and its evolution as a phenomenon of Brazilian musical culture, that still need to become clearer. Key words: Samba - History - Brazilian music
O termo Samba provém de muitas origens e uma delas advém da palavra semba, conforme SARMENTO citado por CASCUDO (1962, p. 675). Consiste num círculo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou uma preta, que, depois de executar vários passos, vai dar uma umbigada (a que chamam de semba) na pessoa que escolhe entre as da roda, a qual vai para o meio do círculo substituí-lo.
Também encontrada em sentido generalizado, a palavra Samba diferenciava as sessões de candomblé das de Samba, ou seja, faziam-se as danças fetichistas, chamadas candomblé, e as profanas, chamadas Samba. O termo Samba pode ter sido formado também por duas palavras africanas: SAM, que quer dizer PAGUE e BA, que quer dizer RECEBA.
Em alguns países como Peru, Argentina, Chile, dentre outros da América Latina, é utilizado o vocábulo zamba para designar coreografia e música; apesar da semelhança vocabular com o Samba, elas, segundo os tratadistas, não têm entre si nenhuma relação coreográfica ou musical.
Segundo LEMOS citado por ANDRADE (1989, p. 454), o termo é de origem nordestina, do “terreiro dos feiticeiros e rezadores”. (...) Samba é um verbo conguês, significando queixar-se, rezar. É igualmente uma dança religiosa, em louvor da divindade, uma cerimônia do culto.
A palavra conheceu verdadeiro período de ostracismo, no início deste século, uns vinte anos depois que abolida a escravatura, vinda a República, novos progressos e liberdades maiores, igualações do preto ao branco, fizeram os Sambas legítimos rarearem no Brasil. Ainda mais, adotados pelos brancos rurais, como forma coreográfica, como elementos rítmicos e melódicos, como forma musical, à medida que se deformava pouco ou muito nas mãos destes, também originava um desperdício das variantes, que desde muito tinham seus nomes como é o caso do Coco. Por tudo isso o “Samba” como palavra e coisa rareou muito. Era expressão literária caracterizando um passado e o objeto apenas duma ou doutra composição impressa, mais ou menos erudita. Até que os maxixeiros e compositores de maxixe principiaram empregando a palavra de novo, não para designar a coreografia antiga afro-brasileira, mas um caráter regional de maxixe: “Maxixe” se dizendo das peças de sensibilidade e movimento
1 Doutor em Música pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista de Pós-Doutorado 1 da FAPESB, pesquisa sobre Bandas, Filarmônicas e Mestres de Banda da Bahia, Choro, interpretação musical e formas alternativas de educação musical, no campo dos estudos sobre Cultura Musical Brasileira.
especificamente cariocas e “Samba” ao maxixe de origem jeito rural, com especialidade nordestina. (ANDRADE, 1989, p. 454).
De acordo com Câmara Cascudo, com a designação de Samba, não é conhecida nenhuma dança africana e nenhum registro de viajante durante o século XIX. Danças com umbigada vieram para a América Latina com outros nomes como: lundu, lariate, calenda, batuque (o batuque comum, o paulista, o goiano, o cateretê). Cascudo afirma ainda que Samba é nome angolês, que teve sua ampliação e vulgarização no Brasil, consagrando-se na segunda metade do século XIX.
Conforme Cascudo, os cronistas
portugueses reuniam, sob o rótulo único de
batuque2, pelo menos três formas de danças
nativas de Angola e do Congo. Estas que
passaram ao Brasil, com a mesma designação
genérica, distinguem-se uma das outras na sua
movimentação, como dança de umbigada, dança
de pares, dança de roda e dança em fileiras,
porém esta última só foi levantada em estudos
posteriores, não sendo assim referida pelos
cronistas portugueses.
Todas elas se combinaram e recombinaram,
tanto entre si quanto com outras danças, de
maneira a dar uma grande variedade de espécies
herdeiras do batuque. Essas danças se
distribuíram por todo o Brasil, marcadas por três
grandes zonas de incidência, onde evoluíram
distintamente da dança rural, diversão de
escravos para dança urbana e mesmo social.
Uma dessas zonas de incidência é a zona do côco
que, conforme Cascudo, resultou da combinação
do Samba (dança de umbigada) e do baiano
(dança de pares), a que a embolada e certas
dança sociais, como o lanceiros e o galope,
deram, na virada do século, o último retoque.
O côco se dança, ou dançava em todo o Nordeste
Oriental, mas nessa região também se registraram
espécies que caberiam melhor na zona do
Samba, como o bambelô de Natal. Tipos de côco:
bambelô (RN), virado (AL), de roda (PE), dança
de umbigada; côco (CE-PB), mineiro pau (PE),
milindô (CE), dança de pares; de troca de
parelhas (Pe), trocado ou troca-parelha (AL),
dança de pares com presença da umbigada; de
parelha (AL), dança de pares e dança de roda;
de cordão (PE), em fileira (AL), dança em
fileiras; de pares (PE), dança de pares com presença da umbigada; de parelha trocada ou de visita (AL), dança de pares com presença da umbigada; solto (AL), dança de pares com umbigada. Da zona do Samba prevalece a dança de umbigada - um dançarino ao centro da roda, passando a vez com uma umbigada. Compreende esta zona do Maranhão (tambor de crioulo), a Bahia (samba de roda), o Estado da Guanabara (partido alto) e São Paulo, onde as formas vigentes são as de dança em fileiras (Samba rural, Samba-lenço, batuque) algumas vezes com a umbigada ou pelo menos a vênia de convite à dança. Talvez esta zona se estenda ao Piauí e Minas Gerais. Tipos de Samba: tambor de crioulo (MA), Samba (CE-PB, PE, DF, SP), Samba de roda (BA), partido alto (DF), piauí (CE-PB), dança de umbigada; Samba de roda (SP), dança de roda; Samba rural (SP), dança em fileiras; Samba-lenço (SP), dança em fileiras e dança em pares com presença da umbigada; batuque (SP), dança em fileiras com presença da umbigada; e bate-baú (BA), dança de pares com presença da umbigada. A outra é a zona do jongo, essa em duas espécies: o jongo e o caxambú. Nela floresceram o jongo no Estado do Rio, em São Paulo e talvez em Goiás, e o caxambu em Minas Gerais. As fronteiras dessa zona invadem as da zona do Samba em São Paulo. Tipos de jongo: jongo (RJ, SP), dança de pares; e caxambu (RJ, MG).
Do batuque originaram-se também o lundu, em grande voga no Brasil durante todo um século e o baiano, que deu origem ao côco e posteriormente ao baião, antes de desaparecer de vez como dança. Algumas peças do baiano ficaram tradicionalizadas no bumba-meu-boi.
Outros tipos de Samba:
2 Denominação genérica para o baile africano.
Como o Samba Rumba, muitas outras formas de Samba foram desenvolvidas, como é o caso do Samba Reggae, Samba Funk, Samba Rock e muitos outros. O pagode é uma outra forma derivada do Samba muito evidente no Brasil.
Na Bahia, em fins do século XIX, provável berço de suas primeiras sessões, a palavra Samba já era usada para designar as festas de danças de escravos e ex-escravos. Nesse mesmo período muitos baianos migraram em direção ao Rio de Janeiro, e com esses baianos eram levadas as primeiras manifestações daquele que se tornou uma das maiores referências musicais brasileiras,
o Samba, e essas manifestações eram atribuídas à dança e à música que outrora já se encontravam na Bahia. A migração desses baianos pode ser explicada por fatores históricos como o término da Guerra de Canudos que levou, em 1897, um grande número deles incorporados às tropas que combatiam Antônio Conselheiro, porém essa migração pode ser observada muito antes, nos últimos anos da Monarquia, quando, pela decadência do café, houve a transferência de escravos do Vale do Paraíba para a zona urbana carioca. Entre esses baianos encontravam-se algumas baianas que ficaram conhecidas como tias e entre elas estavam a Tia Ciata, famosa doceira e festeira, a Tia Amélia, mãe de Donga, a Tia Prisciliana, mãe de João da Baiana, a Tia Veridiana, mãe de Chico da Baiana e a Tia Mônica, mãe de Pendengo e de Carmem do Xibuca. O Rio de Janeiro, então Distrito Federal, tornou-se a comunidade dessas baianas em bairros vizinhos ao centro, como a Saúde e a Cidade Nova. Segundo PRAZERES citado por CÁURIO (1988), por volta de 1915, a Praça Onze havia se transformado numa verdadeira África em miniatura. Tia Ciata, a mais famosa de todas as Tias, logo instalou-se num sobrado da rua Visconde de Itaúna, nº 117, em frente ao Colégio Pedro II, onde fundou uma casa comercial para vender quitutes baianos e cultivar o jogo (baralho, dominó, etc.). O Samba, designado como gênero musical urbano, estava nascendo na casa da Tia Ciata, pode até mesmo se dizer, junto com os doces que ela fabricava. E isso ocorria através das frequentes reuniões em que grandes músicos da época, inspirados naquele ritmo trazido por Tia Ciata, juntamente com todos os outros baianos, compunham suas músicas. Entre esses músicos estariam importantes compositores de Samba do início do século XX como: José Barbosa da Silva (Sinhô, considerado o rei do Samba), Ernesto Joaquim Maria dos Santos (Donga), Alfredo da Rocha Viana (Pixinguinha), João Machado Guedes (João da Baiana), Jovino Hilário Ferreira, Otávio Viana (China, irmão de Pixinguinha), Heitor dos Prazeres e muitos outros. Foi a partir dessas reuniões, onde a música era misturada com jogos e diversões, que o Samba se afirmou como gênero urbano até hoje manifestado.
Sabe-se que, a partir de 1870, pelo cruzamento ou influência recíproca e sucessiva do lundu, da polca, da habanera, do tango e do maxixe (este reprimido e excomungado pelos padrões burgueses da belle époque brasileira), começaram a aparecer músicas que tendiam ritmicamente para
o Samba.3 (CÁURIO, 1988, p. 126).
3 Exemplos podem ser encontrados em Moqueca Sinhá, espécie de lundu de 1870, As Laranjeiras da Sabina (1888), A Morte do Marechal (1893), Não Deixa Tirar (1902) e Vem Cá Mulata (1906).
Ensaios “Pelo Telefone” é considerado oficialmente
o primeiro Samba urbano gravado no Brasil e
isso se deu em 1917. Ele foi registrado em 1897 por Ernesto Joaquim Maria dos Santos (Donga) na Biblioteca Nacional sob o número 3295, gravado em disco Odeon 121313 pela Banda Odeon e, mais uma vez, ainda em disco Odeon 121322, cantado por Bahiano.
Pixinguinha, Sinhô e Donga formavam o mais renomado trio de compositores de Samba de sua época. Porém, em anos seguidos, outros grandes compositores e intérpretes do Samba podem ser aqui enumerados. Figuram dentre eles: Ismael Silva, Paulo da Portela, Nilton Bastos, Bide, Marçal, Mano Elói, Mano Rubens, Noel Rosa, Ari Barroso, Dorival Caymmi, Cartola, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Gilberto Alves, Ataulfo Alves, Alberto Ribeiro, Paulo Barbosa, Nelson Cavaquinho, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Clementina de Jesus, Elza Soares, Paulinho da Viola, dentre muitos outros.
O Samba, assim como muitos outros gêneros e formas da Música Brasileira, guarda em si uma profunda riqueza de elementos culturais, e são esses elementos que formam o grande lastro desta cultura; entender e dar continuidade a esse processo é, sem sombra de dúvidas, o grande desafio para os estudiosos dessa música.
Através deste estudo, foi possível evidenciar diversos aspectos constitutivos do Samba e também concluir o quanto ele e muitos outros estilos musicais brasileiros necessitam de exames aprofundados que elucidem as controvérsias já existentes e esclareçam, cada vez mais, esse que é um dos maiores fenômenos da Música Brasileira.
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Resumo
Este artigo está dividido em seis partes. 1) Como o autor se envolveu com música para peças de teatro. 2) Aspectos da trilha sonora "Ao Vivo": o ator cantando e tocando. 3) Aspectos da trilha sonora gravada. 4) Problemas técnicos de sonorização na Bahia. 5) Música para coreografias. 6) O resultado da sua experiência. Palavras-chave: Música - Teatro - Dança
This article is divided in six parts. 1) How the author got involved with music for theater plays. 2) Aspects of the "Live Soundtrack": the actor singing and playing. 3) Aspects of the "Recorded Soundtrack". 4) Technical problems in Bahia sound systems. 5) Music for choreographies. 6) The result of his experience. Key words: Music - Theater - Dance
Em 1989 (eu acho), meu amigo Monclar Valverde me telefonou. Disse que tinha recebido um convite do conhecido diretor Deolindo Checucci para fazer a trilha sonora para seu novo espetáculo e que não podia assumir o compromisso por motivos que não guardei na memória nem importam. Perguntou se eu queria fazer o trabalho no seu lugar. Ele disse também que não sabia quanto eles iam me pagar nem o que era exatamente que tinha que ser feito. Topei na hora. Do alto dos meus 19 anos a proposta parecia ser muito interessante. Significava que eu ia entrar como profissional num meio absolutamente novo e pelo qual eu sempre nutri uma enorme simpatia, pois eu era na adolescência, que mal acabara de passar, um espectador assíduo das peças do Teatro Santo Antônio (que eram de graça ou muito baratas), da Sala do Coro do TCA e do antigo e lindo Teatro Vila Velha.
A peça se chamava “Apenas Bons Amigos” e era composta de cenas isoladas, ou seja, um teatro de sketches. No elenco Jackson Costa, Arly Arnaud, Frieda Guttman e Edlo Mendes. O meu papel era simples. Eu tinha que musicar as letras de canções que já estavam no texto, ensinar os atores a cantá-las, colocar um vestido rosa claro cheio de babadinhos incrustados, pôr um chapéu enorme com uma cabeleira verde e rosa, sentar-me ao velho piano da Escola de Teatro de costas para o público e acompanhar os atores nas canções. Aos 19 anos, magro de ruindade e de costas, eu acabava realmente enganando o público e me transformava na última surpresa do espetáculo, pois no momento dos aplausos finais, os atores me anunciavam, e eu, num golpe só, virava de frente e tirava o chapéu, revelando toda a minha masculinidade esquelética, encoberta pelos apliques e bordados do meu figurino.
Além disso, durante algumas cenas, Deolindo me pediu para fazer uns “efeitos sonoros” no piano, uns clusters (aglomerado de notas que formam um acorde inominável), uns arpejos (a execução sucessiva das notas de uma escala), umas notas graves, umas “caixinhas de música”, enfim, uns “climas” para determinados momentos específicos que eu ia experimentando durante os ensaios e recebendo o sim ou o não do diretor geral.
De lá pra cá eu não parei mais. Há praticamente vinte anos tenho me envolvido com peças de teatro e, mais tarde, com espetáculos de dança ininterruptamente. Descobri mesmo que eu e o teatro já fomos “Apenas Bons Amigos”, fomos ficando “Muito Mais Que Bons Amigos”, e hoje somos “Amigos Para Sempre”.
Nesse final dos anos 80 tinha muito pouca gente de música envolvida com a preparação de trilhas sonoras para teatro em Salvador. A impressão que me dava é que realmente havia uma cisão entre as duas artes. Principalmente quando eu ouvia histórias do tempo de José Possi Neto como diretor da Escola de Teatro, em que bandas inteiras acompanhavam espetáculos e vários músicos pareciam estar fortemente ligados à cena. Talvez, nesse momento, o artista que mais encarnava esse personagem era Fernando Marinho. Pianista e ator (e mais recentemente também diretor), reunia em si a música e o teatro. Mas fora ele, as trilhas eram feitas por um pequeno grupo de músicos isolados que eventualmente se envolviam com uma peça ou outra. Devo parte da minha rápida afirmação
como “diretor musical de peças” a essa pouca proximidade que música e teatro chegaram a ter nesses anos. Era como se eu tivesse encontrado um grande filão de mercado que estava ali, como que esperando que alguém tomasse conta dele. Os anos 90 foram o período em que trabalhei mais intensamente com espetáculos teatrais. A imprensa (não me lembro quem), chegou a publicar: “Nove entre dez espetáculos teatrais de Salvador têm a Direção Musical de Luciano Salvador Bahia”.
Já experimentei diversas formas de fazer uma trilha sonora, e desenvolvi a minha técnica sempre tranquila e quase nunca infalível de trabalhar nelas. A primeira pergunta que eu faço a um diretor (ou produtor) quando sou chamado para fazer uma trilha é a seguinte: a trilha é ao vivo, é gravada ou é meio a meio? Aqueles diretores que sabem a resposta (pelo menos essa) ajudam muito, porque é radicalmente
diferente o processo para produzir música ao vivo daquele de produzir a fria, fácil e adorável música gravada.
Já que é ao vivo, quem vai tocar? Quem vai cantar? Vai ter microfone? Aonde vai ficar a banda? Quantos músicos a produção pode pagar? Os atores sabem cantar? Os atores sabem tocar?
Esse é o tipo de trilha que não fica no poder de quem a criou, pois ela vai sair das mãos e gargantas dos atores ou de um grupo de músicos/cantores “anexado” ao elenco por uma produção mais rica ou corajosa. Já trabalhei em espetáculos, a exemplo de “Mulheres de Holanda” (dir. Carmem Paternostro), onde eu tinha uma banda de simpáticas musicistas para produzir todas as notinhas que eu quisesse. Piano, violão, percussão, sax, flauta e violoncelo à minha disposição, além de um elenco formado por cantoras profissionais (como Suzana Belo e Janaína Carvalho) ou atrizes que cantavam muito bem (como Karina de Faria e Fafá Carvalho). YES !!!. Musicistas profissionais, cantoras profissionais e atrizesque-cantam. Mas não poderia ter sido diferente. Afinal era só Chico Buarque na trilha, e Chico quase nunca é primário.
Mas, e quando não é assim? Quero dizer, quando a direção opta por ter música ao vivo e diz para o diretor musical: “Aquele ali vai ter que cantar uma melodia de Arrigo Barnabé”, e esse mesmo ator apresenta certas dificuldades até no internacionalmente conhecido “Parabéns pra Você” ? Pois é. Encontrei por muitas vezes uma certa atitude prepotente e recheada de um certo “se vire” em relação a isso. Nada é para todo mundo. Muito menos cantar. A Escola de Teatro da UFBA, por exemplo, ainda hoje não oferece (nem depois do novo currículo) uma disciplina inteiramente voltada para o canto, ainda que esta fizesse a diferenciação entre o canto do cantor e o canto do ator. Na prática, os atores são muitas vezes exigidos a ter alguma fluidez no la-la-iá. Não acredito em preparação vocal formadora de nada. Ela é, sim, lapidadora das vozes, afiadora e afinadora de quem já traz consigo uma certa intimidade com o canto, mas não acredito nem nunca vi, (ou melhor, ouvi) isso movimentar uma voz insegura em direção ao SOL. De forma curiosa, nenhum diretor exige de qualquer elenco a habilidade de tocar um violãozinho-barato, nem fazer uma batucadinha-de-fundo-de-quintal. Se eles podem fazer, ótimo. “Meu elenco é talentosíssimo”. Mas se eles não sabem, usa-se, sem muitos choramingos, uma solução alternativa. Mas cantar, não. Um atorcantor é apreciadíssimo. Mas parece que um ator que não canta bem deveria, sozinho, se preocupar com isso e fazer algo para sair desse estado quase vergonhoso de ser incapaz de dar um RÉ depois de um DÓ. Por causa disso, aprendi a mostrar o tamanho correto da imensa esperança que os atores, que não eram lá muito “canarinhos”, depositavam no músico da equipe. É como se através de algum trabalho milagroso feito nos comuns 2 ou 3 meses de ensaio, esse Diretor Musical (muitas vezes assessorado por um professor de canto,o famoso Preparador Vocal) fosse levá-lo a um lugar seguro entre o DÓ e o próximo SI. Teatro com música ao vivo é lindo, mas é necessário que um músico participe da escolha do elenco. É algo muito específico que está em jogo e, muitas vezes, os elencos não estão preparados para realizar
o projeto. E o resultado fica meia-boca.
Sinto que de uns dois ou três anos para cá estamos passando (pelo menos aqui em Salvador) por um certo preconceito dos diretores em relação à música gravada. É uma fase em que o valor dado ao que se resolve na cena com
comprar instrumentos musicais (mesmo que de segunda categoria), não havia possibilidade de haver uma quantidade decente de ensaios no local da apresentação e com uma microfonação adequada, etc, etc. No entanto, se nessas mesmas produções a opção fosse feita pela música gravada, eu teria na minha mão toda sorte de sons que eu precisasse e quisesse. É por isso que no tópico anterior chamei a música gravada de “fria, fácil e adorável”.
Outra questão relevante quando falamos de trilha gravada é o fato dela não ser trazida à luz na presença do diretor. Ela nasce na grande maioria das vezes num estúdio e na solidão da criação do compositor. Isso pode gerar uma série de “vai-e-vens” dos trechos criados e, muito freqüentemente, serão ouvidas frases do tipo “tá lindo, mas não era bem isso”.
Felizmente nunca sofri muito com isso, mas já vi amigos trilheiros desesperados e inconformados com a dificuldade de certos diretores em dizer o que eles queriam e, o que é pior, explicarem por que rejeitaram os trechos criados e gravados. O que alivia um pouco a situação é a facilidade que temos hoje da gravação digital não linear, que permite que as mudanças possam ser feitas com muito mais rapidez e praticidade do que na época analógica das gravações em fitas (os velhos Dat´s e ADat´s). Essa facilidade do mundo digital nos permite, por exemplo, acelerar ou retardar uma música com apenas a mudança de um parâmetro (o BPM) no arquivo do projeto da música (e isso pode ser feito em 5 segundos !!!). Claro, nem sempre é assim. Estou falando de um caso simplório. Mas mesmo nas situações onde esse tipo de ajuste precisa de uma solução mais complexa, jamais podemos comparar essa solução aos distantes idos do início dos anos 90 para trás, onde toda a gravação precisaria ser
refeita | para | resolver | um | problema | de | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|
“velocidade” | (andamento | é | o | termo | |||
tecnicamente correto). |
A música gravada nos dá uma possibilidade de diversidade sonora muito grande, podendo trazer à cena (quase) qualquer universo sonoro que seja necessário. Queremos uma sonoridade orquestral, eletrônica, nordestina, contemporânea, tribal, pop, datada? “Pois não, senhor, aqui está o seu pedido”. Precisamos mudar de universo timbrístico rapidamente? “Pronto, senhor, aqui está o som de balalaica que o senhor requisitou, e, nesta outra faixa, temos os grooves de hip-hop misturados com a voz de uma
soprano e de um aborígine australiano”. Dá pra fazer isso ao vivo? Dá. Mas não me chame pra fazer.
É lamentável, mas é real: a nossa Roma Negra está mil anos luz atrás do Sul Maravilha quando a questão é sonorização de espetáculos de teatro. Quando a direção opta por uma trilha que envolve música gravada ou sonorização do palco (seja para a voz dos atores, seja para efeitos sonoros produzidos em cena), esbarramos aqui na cidade num problema seríssimo: a capacitação de técnicos para esse enredo. Isso sem falar na falta de equipamentos, na falta de preocupação (e de dinheiro) das produções para que sejam realizados ensaios suficientes com a técnica, e
teatro baiano não dá valor à técnica, como se nada artisticamente relevante pudesse ser obtido a partir dela. Por isso não lhe dá a importância necessária, não ensaia com a técnica, não exige que os técnicos de som se aprimorem, enfim, não se desenvolve por aí, ainda que não prioritariamente por aí. Que pena. Ela seria somente mais uma arma na nossa mão, para usarmos quando quisermos, para acertamos nosso alvo com mais precisão ainda. Já penei muito como diretor musical por ter sido (erroneamente) repassada para mim uma responsabilidade que era exclusivamente técnica. Geralmente é o compositor da trilha que tem que ir para a mesa de som resolver as incongruências da sonorização. Mas não foi pra isso que me chamaram, nem eu tenho que dar um jeito nisso. Mas para aliviar um pouco a barra do teatro, é preciso dizer que em espetáculos musicais nós sofremos do mesmo jeito. Acho mesmo que a culpa é do carnaval. Desse carnaval que se estende por 365 dias no ano. Vivemos uma sonorização carnavalesca mesmo se tocamos Jobim ou se declamamos Pessoa. O som alto e vibrante é quem manda. A sutileza, a equalização suave, correta, adequada...Esqueça. É bumbo na cara de Shakespeare e cymbal estalando nos ouvidos de Eurípedes. Não quero parecer um acústico integralista. Adoro barulho, rock´n´roll, distorções, ruídos, etc. Mas, como diria Riachão, “Cada macaco no seu galho”. Ser OBRIGADO a ouvir sonorizações inadequadas o ano inteiro é triste. Procurar o suave, o introspectivo, o delicado e não achar, também é triste. E continuamos a receber as patricinhas da Globo lotando nossos teatros com sonorizações impecáveis. Enquanto nossas vozes baianas vão ficando mais distorcidas e frágeis. Quer dizer, se o microfone não falhar. Mas gostaria de dividir a responsabilidade dessa tragédia entre dois grupos: o primeiro,
o dos técnicos de som que muito comumente acham que “assim já tá bom”; o segundo, o das empresas de sonorização que não investem na capacitação dos seus técnicos para que eles percebam o quanto tudo pode melhorar; e aos produtores locais que não reservam dinheiro e tempo para que a técnica possa acontecer como deveria. Eles querem o resultado de uma Broadway, com um orçamento cuja distribuição não valoriza a técnica.
Adoro fazer música para coreografias. ADORO !!!!!!! É uma pena que Salvador ainda não tenha um circuito de dança intenso que nos dê novas produções durante todo o ano. É inegável a popularidade muito maior que o teatro tem em relação à dança e isso se reflete na quantidade de produções por ano e também nos orçamentos delas. Além disso, o maior projeto de dança que a cidade já viu na sua história (O Atelier de Coreógrafos) foi sumariamente banido do mapa pela atual gestão da Secretaria de Cultura, sem sequer ter sido reavaliado e/ou redimensionado. Aquela semana em que Salvador respirava dança contemporânea, com o TCA lotado todos os dias, acabou para dar lugar a pequenas produções isoladas, pulverizando assim o valioso impacto artístico que aquele grande projeto causava na cidade. Aliás, por falar nisso, a maior companhia de dança que esse estado já teve (O Ballet do Teatro Castro Alves), no auge da sua forma artística e técnica, também sofreu um duríssimo golpe dessa mesma Secretaria, que desprezou o enorme valor cultural de ter um corpo de dança estável, competentíssimo, experiente, digno de qualquer adjetivo que queira ser dado a uma companhia em plena forma. Babau. Correu mesmo o risco de ser extinto, não fosse a mobilização da classe artística para impedir isso. Apesar de não ter sido extinto, perdeu a grande maioria dos melhores bailarinos, e está vivendo um momento artisticamente difícil para uma companhia de 25 anos que só fazia melhorar a cada projeto e cada vez mais atraía bailarinos do país inteiro e até mesmo de fora, interessados em fazer parte desse corpo de dança tão renomado e em pleno vigor.
Tive a sorte de, durante esses recémpassados anos de glória da dança baiana, produzir diversas trilhas para coreógrafos baianos e de fora, podendo exercitar vários mecanismos de composição para esse enredo específico.
Fazer música para dança é completamente diferente de fazer música para teatro. No teatro, salvo raríssimas exceções, a música interfere e vai embora. Interfere e vai embora. Interfere e vai embora. Na dança, salvo raríssimas exceções, a música está em cena o tempo todo. Compor uma música de 40 a 50 minutos (tempo usual hoje em dia para uma coreografia), é radicalmente diferente de criar várias intervenções, muitas vezes de poucos segundos. Manter a “trama musical” rolando por 50 minutos não é brinquedo não. Confesso também que não foi fácil para mim realizar esse sonho da “unidade” em uma trilha tão comprida e original. Tinha muito medo de fazer isso e cheguei a recusar vários trabalhos por não me sentir capaz de realizá-los. Estava acostumado ao meu teatrinho lá, com suas canções e climas sonoros, e a idéia de fazer uma composição que pudesse ter o mínimo de unidade e que durasse 50 minutos tinha para mim um quê de pânico. Mas tomei coragem e comecei a aceitar os convites e a gostar do ofício.
Outro dado interessantíssimo em relação às trilhas de dança é como os bailarinos e coreógrafos têm um repertório musical enorme. Eles descobrem coisas curiosíssimas, compositores absolutamente desconhecidos e, principalmente, voltados para a música contemporânea e experimental. Por isso, muitas vezes, eles mesmos resolvem a trilha deles. Não descobriram ainda o quão bacana é ter um músico colado e criando junto com o coreógrafo. É claro, os orçamentos também definem a história. Simplesmente não dá pra contratar o compositor e a solução é fazer uma enorme colagem que muitas vezes vira o samba-do-criolodoido com trechos de vários estilos e sonoridades díspares.
Destaco, nas minhas trilhas, a música para a coreografia “Branca Retina”, do coreógrafo baiano radicado na Alemanha Carlos Sampaio; a música para “Street Angels” do grupo Dance Brazil que teve temporada em Nova York de casa lotada diariamente durante 15 dias (o dobro da pauta concedida a todas as outras companhias internacionais que ocuparam o teatro especializado em dança Joyce Theater naquele ano); e o meu mais recente trabalho com o coreógrafo mineiro Mário Nascimento para a comemoração dos 25 anos do Ballet do TCA, “Devir”. Com Mário, tive uma interação tão imediata, que apenas um trecho da música teve de voltar para ser refeito e somente por uma vez. Ele me contou que trabalha sempre com o mesmo compositor, e que, determinada vez, fez um trecho específico da música voltar 14 vezes até que ele aprovasse. Lá ele !!!
VI – Senhoras e senhores, boa noite
Após 20 anos fazendo música para a cena, tenho muito a agradecer ao teatro e à dança. Principalmente, os amigos que fiz por lá. Salvador vive um momento ótimo no que diz respeito a bons atores. Vários deles ganharam destaque nacional como Wagner, Lázaro, Vlad, Maria, Fabrício, Alexandre, Zéu e tantos outros. Vejo os alunos da Escola de Teatro da UFBA cada vez mais musicais, antenados e conscientes da posição do ator na sociedade nada alternativa desse começo de século. Outra coisa belíssima nesse ofício é a interdisciplinaridade dele. Ou você, amigo músico, gosta de teatro e dança, ou você tem o que dizer sobre o figurino, o cenário,
o ritmo de uma cena, o tom de outra, etc, etc, etc, ou então não vá fazer música cênica. Ou a cena te toca pessoalmente, te emociona de alguma forma ou é melhor que você, amigo músico, fique longe dela. Ou você consegue colaborar para a edificação de algo que está, ao mesmo tempo, aquém e além da música pura, ou é melhor ir tocar seu tamborim sossegado longe do drama. Como ascendente Sagitário legítimo, eu tenho uma tendência enorme de me interessar por (quase) tudo, e, vira e mexe, meus amigos diretores estão ouvindo as minhas penadas em relação aos atores, ao cenário, ao figurino, ao cartaz de divulgação, etc. Ou o entender o papel que a sua música tem no espetáculo, é muito compensadora. Na dança, por exemplo, a felicidade de ver a música que eu criei mobilizar o bailarino para o movimento é um luxo inenarrável. Ouvir daquele que acabou de dançar a minha música frases do tipo “adorei essa” ou “essa música me estimula muito” é bom demais. Apesar de viver a maior parte da minha vida profissional em projetos puramente musicais como produção de CDs, direção musical de shows, elaboração de arranjos, etc, continuo mantendo pela música cênica um enorme interesse, com certeza ainda maior do que aquele que eu nutria quando comecei a trabalhar em trilhas, muito provavelmente por ter aprendido muito com esse mundo do drama e ter participado de tantas produções bem acabadas e artisticamente relevantes.
E o drama continua me perseguindo. Recentemente, uma canção minha que não foi feita para a cena (“Queda”, na voz da baiana Márcia Castro) foi parar na trilha sonora da novela das seis da Rede Globo (“Ciranda de Pedra”) como tema do personagem do ator Caio Blat. Acho mesmo que minhas próprias canções (como”Queda”) acabam muitas vezes por contar uma história e/ou criar personagens. Não sei dizer se foi o meu envolvimento com a cena que fez surgir essa forma de compor. Mas não interessa, nem nunca terei uma resposta sobre isso. O que sei é que me sinto muito à vontade
O que é isto, audição musical?
Mario Ulloa1
Resumo
Breve introdução a conceitos básicos para uma audição musical atenta. Partindo de perguntas simples sobre características elementares do som (timbre, intensidade, altura, duração), bem como sobre alguns elementos da música ocidental (harmonia, contraponto, forma, afinação, ritmo), o texto responde cada uma delas numa espécie de diálogo acessível ao leitor não especializado em música. Palavras chave: Audição musical, Características do Som, Elementos Básicos da Música Ocidental.
Abstract
essas conversas sobre os seus intrincados universos tornam-se agitadas e confusas, devido, talvez, à utilização inconsistente, para não dizer equivocada, de conceitos musicais elementares. Daí, situações curiosas serem também comuns, como, por exemplo, quando alguém diz “meu violão está semitonado”, em vez de dizer, desafinado. Certa feita foi-me relatado um hilariante colóquio: “você semitonou!”; “como assim, eu me mitonei?”.
Lembro que, há alguns anos, um jornal desta cidade promoveu a publicação de uma série de matérias semanais almejando discutir assuntos concernentes à música. Contudo, aquelas discussões centralizavam-se mais nas
letras das músicas – usos e
Brief introduction to basic
funções sociais, problemas
concepts for a thoughtful
da indústria cultural – do
musical hearing. Starting
que nos elementos musicais
with simple questions
propriamente ditos. Recen
about basic characte
temente, um palestrante
ristics of sound (pitch,
tratou alguns argu-mentos
intensity, height, length)
musicais schope-nhauerianos
and on some elements of
– aqueles do livro terceiro do
Western music (harmony,
Mundo como vontade2: tons
counterpoint, form,
tuning, rhythm), the text answered each of them in a sort of dialogue accessible to readers not specialized in music. Keywords: musical hearing, characteristics of sound, basics of Western music.
Não existe nada tão sutil e abstruso que,
tendo sido alguma vez tornado simples, inteligível e comum não possa ser assimilado pela mais vagarosa inteligência. (Francis Bacon, 1609)
A música tem alguma coisa de onipresente na nossa existência. Ela está nas rádios, TVs, nos bares, cinemas, espetáculos de teatro, de dança, nas festas religiosas, em eventos de toda índole
– quase não há acontecimento político, acadêmico, comemorativo, que não se diga “abrilhantado por uma ´intervenção` musical”. Seja lá onde estivermos, ela está. Falar “dela”, sobretudo em situações informais, parece ser algo prazeroso, cativante. Vez por outra, porém,
mais graves da harmonia, baixo contínuo, natureza inorgânica, reino vegetal e animal – enfim, mistura de um vocabulário técnico-musical com especulações metafísicas. Pensei que, se a platéia estivesse mais próxima do vocabulário musical ali tratado, teria talvez atiçado aquele insípido debate.
Inicialmente, entendo a audição musical como um ato de reconhecimento dos fenômenos musicais. Com freqüência escuto: “Mário, adoro teu CD, eu o coloco e durmo que é uma beleza”. A música, de fato, tem vários usos e serviços. Ela pode suscitar sentimentos diversos, transpor-nos a lugares diferentes, trazer lembranças ou esquecimentos, provocar sonhos – e se for ruim, pesadelos também. Contudo, a audição à qual me refiro pode ser outra coisa. Pode ser um ato
1Violonista, Professor Doutor da Escola de Música da
Universidade Federal da Bahia. ulloamar@hotmail.com 2 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação, traduzido por Jair Barbosa, São Paulo: Unesp, 2005, pp. 233-350.
Ensaios de reflexão, uma ferramenta de conhecimento,
de expansão das nossas capacidades
perceptivas, de concentração e interação. Há,
pelo menos, duas perguntas instigadoras que
podem ser grandes companheiras: “o quê ouvir?”
e “como ouvir?”.
Debrucei-me neste texto com a intenção de
aproximar o leitor de alguns conceitos musicais
básicos, visando o aprimoramento da audição
atenta – adestramento do ouvido musical – e a
consistência nas conversas sobre música. Para
simplificar ao máximo as explicações, utilizei um
procedimento também básico: a interrogação.
Elaborei uma seqüência de perguntas que, de um
lado, terão resposta imediata no texto, e de outro,
poderão servir para despertar curiosidades ad
infinitum. Os vocábulos a serem explicados
limitam-se à tradição musical do Ocidente, pois
eles são muitas vezes intransferíveis a outras
tradições, como por exemplo, pré-coloniais, hindus,
árabes, que utilizam códigos musicais diferentes.
A abordagem musical pode ser efetuada por
caminhos multifacetados e interdisciplinares.
Todavia, já que minha intenção, como disse, é
trilhar conceitos básicos, tratarei questões
relativas à “sintaxe” da música, desde que haja,
é claro, a idéia subjacente de música como
linguagem. O leitor dirá se a compreensão destes
conceitos é simples ou complexa. Se for simples,
terei alcançado meu objetivo inicial, o da
aproximação. Se for complexa, terei realizado
meus objetivos tácitos, destacar que o estudo da
música requer dedicação profunda, minuciosa,
e que devemos apoiar aqueles, principalmente
crianças e jovens que, apesar das dificuldades –
econômicas, sociais, culturais –, pretendem se
dedicar com vigor ao estudo dessa arte.
Seguindo o conselho de Adkins3 que afirma
ser a pesquisa algo como atirar uma flecha para
o ar e, depois, pintar o alvo onde quer que ela caia, tomei, como ponto inicial da anunciada interrogação musical, o motivo a seguir.
Qual é o elemento básico da música? É o Som4. Faça soar uma corda de violão e pergunte-se: o que é isso? É um Som. O que é isso que designamos Som? É um fenômeno acústico que consiste na produção de ondas sonoras propagando-se em algum meio elástico, como o ar.
Como se produzem essas ondas?
Podem ser produzidas, por exemplo, ao fazer vibrar uma corda esticada, ao soprar uma coluna de ar, ou ao bater na membrana de um tambor.
Utiliza-se o Hertz (Hz)5 como unidade que indica, ou mede, a quantidade de ondulações – também designadas periodicidades, oscilações, freqüências, ciclos, vibrações – por segundo. Entendemos um conjunto de oscilações, digamos 440 Hz, como um tipo de Som. Na música do Ocidente foi criado um sistema que dá a alguns tipos de Som o nome genérico de Notas musicais. Portanto, havendo Sons diferentes há Notas musicais diferentes. Um fato importante sobre a estrutura do Som foi registrado por Pitágoras (c. 582-500 a.C.) que, utilizando uma corda esticada (Monocórdio), explicou as propriedades e relações matemáticas da vibração sonora. Graças a essa experiência, sabemos que uma corda esticada, ao vibrar, produz não apenas um único Som, mas um conjunto de Sons que vibram concomi-tantemente. Foi dado a esses Sons resultantes o nome de Sons Harmônicos ou, simplesmente, Harmônicos. As implicações dessa descoberta foram fundamentais no decorrer da história da música ocidental; conceitos como Harmonia, Acordes, Consonância, Dissonância, bem como questões referentes à Orquestração, e a um vasto número de eventos da prática musical, estão relacionados àquelas observações sobre os Harmônicos.
Ao Som (Nota musical) que possui 440 Hz foi dado o nome de Lá e essa Nota é utilizada como padrão internacional de referência para Afinação. Trata-se de uma convenção adotada, em 1939 – e ratificada em 1953 –, pela Organização Internacional de Estandardização (ISO)6. Todavia, ao longo da história da música ocidental, a referência de Afinação percorreu diferentes padrões. Na Renascença, por exemplo, Luys Milán escreveu: “afinarás a primeira corda [da vihuela] tão alto quando for possível”7. Já no período Barroco, foram encontrados diferentes diapasões – aparelhos
3 H. B. Adkins. In Oxford Dictionary of Scientific Quotations. Citado por Giannetti em O livro das Citações. Companhia das Letras. São Paulo: Schwarcz, 2008, p.117.
4 Para ajudar na compreensão e na memorização, coloquei todos os conceitos tratados neste texto sempre com letra maiúscula.
5 Heinrich Rudolf Hertz, físico alemão (1857–1894).
6 International Standardizing Organization.
7 “...subireys la prima [corda] tan alto quanto lo pueda suffrir“ (tradução nossa). Luis Milán, El Maestro opere complete per vihuela, 1ª ed. 1535/36, editado por Ruggero Chiesa, Milano: Edizioni Survini Zerboni, 1974.
que servem como referencial de Afinação – e o padrão da Nota Lá era inferior ao atual, aproximadamente 415 Hz. Joseph Kerman afirma que, na época de Bach, “níveis diferentes de Altura de Som estavam em uso para órgãos que tocavam as cantatas, de modo que certas partes instrumentais deviam, por vezes, ser recopiadas em tonalidades diferentes a fim de se ajustarem a um órgão afinado recentemente”8. Hoje, algumas orquestras, tendem a afinar em 442 Hz.
Mas o que é afinação?
Afinar é ajustar Sons em um determinado número de oscilações. No violão, por exemplo, existe um número de oscilações por segundo correspondente a cada uma das seis cordas do instrumento. Dizemos que o violão está afinado, quando realizamos o ajuste de cada corda. Também se afina um instrumento em relação a outro. Na maioria dos instrumentos musicais a Afinação é feita constantemente; por exemplo, após a execução de uma peça.
E qual é o porquê dessa necessidade?
O material que constitui as cordas, seja metal ou nylon, é susceptível a mudanças de temperatura no local da execução – ar condicionado, luzes –, ou pela ação dos dedos no instrumento, dentre outros fatores.
Quais são as características do som?
A “Altura”, dentre as diversas características que o Som possui, é uma delas (não confundir “Altura” do Som com “volume”). Há, contudo, uma ressalva. O termo “Altura”
– apesar da naturalidade com que se utiliza – é inadequado, pois, como já vimos, as ondas sonoras são medidas em Hz e não, por exemplo, em centímetros. Por isso, é curioso quando se diz que um Som é mais “alto” ou mais “baixo” do que outro. Entretanto, já que a tradição “fala mais alto”, continuaremos assim denominando-o. Aquilo que provoca em nós essa idéia de “Altura” é justamente a velocidade da propagação das ondas. Se as ondas forem mais rápidas nossa percepção será de uma Nota mais Aguda, portanto, “mais alta”; se for mais lenta, será a de Nota mais Grave, “mais baixa”. Quanto menor o comprimento da corda, mais agudo perceberemos o Som, e vice-versa. Recapitulando, ao fazermos referência à “Altura” do Som, dizemos que ele é, por exemplo, (mais/ menos) Grave ou (mais/menos) Agudo.
Antes de prosseguir, queria tirar uma dúvida: ouvido absoluto, o que é isso?
É um tipo de memória, uma habilidade de reconhecer a “Altura” dos Sons sem referência externa – sem um afinador, um diapasão ou um instrumento musical. Uma pessoa com ouvido absoluto pode identificar, em tese, se uma peça musical está numa determinada Tonalidade, ou se uma peça está sendo executada numa Tonalidade diferente da original (ouvido absoluto passivo). Ela pode também cantar, sem referência externa, alguma canção por ela conhecida na Tonalidade em que a escutou (ouvido absoluto ativo). É importante frisar que o ouvido absoluto não tem relação com algum tipo de “condição superior”, ou seja, não é sinônimo de qualquer vantagem sobre pessoas que não o têm. É apenas um tipo de memória, como a de alguém que decora números, sem ser, necessariamente, bom em matemática. A história tem registros de músicos excepcionais, tanto com ouvido absoluto, quanto com ouvido relativo. Aliás, para alguém com ouvido absoluto pode ser um desprazer escutar uma música por ele conhecida que foi transposta para outra Tonalidade ou que está sendo executada com Afinação padrão de uma outra época, como em certas execuções de música antiga. Para manter o rumo do texto, tratarei do conceito da Tonalidade mais adiante. Outra característica do Som é a Dinâmica, palavra utilizada para designar a organização das Intensidades sonoras.
Intensidade, o que é isso?
A Intensidade está relacionada à amplitude da vibração da onda sonora, ao volume do Som. Uma Nota pode soar – agora sim, estou me referindo ao volume do Som – mais forte ou mais fraca. Quanto maior a amplitude da onda, maior
8 Joseph Kerman, Musicologia, tradução Álvaro Cabral, São Paulo: Martins Fontes, 1987.p. 60.
Ensaios será a sua Intensidade, isto é, nossa percepção
de que o Som tem volume mais forte; a
Intensidade, ou seja, volume do Som, é medida
em unidades chamadas Decibéis (dB)9. A
Dinâmica, como disse, é utilizada para organizar
as Intensidades dos Sons, gradativos ou
contrastantes, desde muito fortes até seus
opostos, quase inaudíveis, e pode ser empregada
de maneiras diversas, por exemplo, por grupos
de instrumentos – uns instrumentos tocam com
maior Intensidade enquanto que outros tocam
com Intensidade menor; ou por trechos da
música – um trecho se toca forte e outro mais
suave. As decisões sobre o uso da Dinâmica
dependem de fatores como estilo, época, local
da execução – tamanho da sala, características
acústicas –, propriedades dos instrumentos
musicais, dentre outros. A Dinâmica pode ter
também funções variadas: suscitar sensações de
tensão ou repouso, reforçar algum clímax, pôr
em destaque algum trecho de uma peça musical,
e assim por diante. Trata-se, enfim, de um dos
recursos mais significativos e complexos da práxis
musical. Considero importante sublinhar que,
em muitas musicas do dia-a-dia – as
“massificadas” –, a Dinâmica (Intensidade)
parece-me não estar devidamente utilizada. Em
casos extremos, contudo amplamente
disseminados, tende-se a fazer música, não só
desprovidas das riquezas da Dinâmica, mas em
Intensidades muitas vezes superiores às
suportadas pelo ouvido humano. Alguém já
disse jocosamente: “música de decibéis”.
A Duração é outra das características. O
Som pode ser mais curto ou mais longo. A
Duração de uma Nota pode, como no caso da
Dinâmica, suscitar sensações de tensão ou
repouso. Pensar na Duração do Som pode nos
conduzir à idéia do Silêncio. Ainda que essa
definição pareça banal, o silêncio, ou “ausência
de Som” – se é que isso é possível – é como a
outra cara da moeda do Som, um elemento
imprescindível. De alguma maneira, a questão
do Silêncio está ligada também às observações
que fiz sobre os excessos de volume.
Outra característica é o Timbre. É o que nos
permite distinguir se Sons da mesma freqüência
(Altura) foram produzidos por fontes sonoras
diferentes. Quando ouvimos uma Nota musical
tocada por um piano na mesma freqüência que
a produzida por um violino, podemos identificar
os dois Sons como tendo freqüências idênticas,
mas com Timbres distintos. A percepção do
Timbre é freqüentemente comparada à
“coloração dos Sons”. Eis uma imagem que pode auxiliar nessa compreensão: os quadros da Marilyn Monroe feitos por Andy Warhol. Nessas imagens vemos o “mesmo” rosto, porém com cores diferentes; da mesma forma podemos escutar um Som semelhante, porém com Timbres diferentes. Como diz poeticamente o musicólogo norte-americano Joseph Kerman: “O amor tem muitos Timbres” (Kerman, 1987, p. 33). A variedade timbrística pode ser também percebida, não só entre instrumentos diferentes, mas também entre instrumentos da mesma espécie, por exemplo, violões de fabricantes diferentes ou ainda de um mesmo fabricante. Mais do que isso, num único instrumento musical podem ser produzidos Sons com Timbres diferentes. No violão, por exemplo, o tipo de corte de unha – ou o toque sem ela, isto é, com a polpa do dedo – bem como a região onde o toque é realizado, determina o Timbre do Som produzido. Não admira que um único instrumento executado por instrumentistas diferentes produza Timbres distintos10.
De posse dos conceitos até aqui tratados, o leitor já pode fazer aplicações práticas. Escute um trechinho de qualquer música e perguntese: Existem mudanças gradativas ou contrastantes na Intensidade dos Sons? Que tipo de Sons prevalecem? Agudos, Graves, ou ambos? E os Sons que estou ouvindo, são curtos, longos? Há Silêncios ou pausas? Que tipo de Timbres eu ouço? Que tipo de instrumentos? (se for possível identificá-los). E quanto à Dinâmica? Há variáveis na Intensidade sonora? Os Sons aumentam ou diminuem (volume) em algum momento, ou mantêm-se iguais? Esses exercícios, mesmo que pareçam simples, são fundamentais para iniciar uma audição musical atenta. Feitas essas considerações, tratarei, a partir deste momento, de alguns dos elementos da música.
Quais os elementos básicos que a constituem?
Dentre a infinidade de elementos que a constituem, três deles são básicos: Melodia, Ritmo, e Harmonia. Acredito que a forma mais
9 Decibel é uma décima parte da unidade de medida Bel, uma derivação do nome do cientista escocês Alexander Graham Bell (1847-1922).
10 Visto sob outra perspectiva, em vez de dizer que um único instrumento possui timbres diferentes, seria possível dizer que um único instrumento possui nuances timbrísticas diferentes.
clara de compreender o conceito de Melodia é imaginando (ouvindo) uma linha de sons consecutivos, uma espécie de traço, geralmente sinuoso, desenhado na direção horizontal. Cante um trecho de uma canção qualquer, uma cantiga de criança, independente de lembrar-se da letra ou não, basta você a cantarolar. Dessa forma, você estará reproduzindo com sua voz uma Melodia, também dita Linha Melódica. A Melodia é uma seqüência de Notas musicais organizada sobre alguma estrutura rítmica.
Rítmica? Mas o que é ritmo?
É um conceito complexo, pois ele está presente em todas as atividades espaciais e temporais. Podemos pensar no Ritmo das estações do ano, do caminhar, da fala, de qualquer coisa que tenha periodicidade. Mas uma definição aproximada poderia ser: Ritmo é a subdivisão do tempo em partes mensuráveis, ou seja, a medição do tempo segundo a periodicidade do Som. Bata palmas e você estará provocando algum tipo de Ritmo. O Ritmo compreende não apenas o posicionamento ou espaçamento do Som no tempo, mas também sua duração. Outros conceitos musicais relacionados ao Ritmo são a Pulsação – que vem de pulso, de batida – e o Andamento, que indica a velocidade da Pulsação de uma peça musical. Bata palmas de novo e caminhe simultaneamente – agora você estará provocando algum tipo de Ritmo em algum Andamento. Podemos dizer que uma determinada peça musical está num Andamento (mais/menos) lento ou (mais/menos) rápido. Na música de concerto – desde a Renascença – o Andamento se representa com palavras como Adagio, Allegro e Presto, dentre outras.
Se, de um lado, podemos visualizar a Melodia horizontalmente, de outro, podemos imaginar (escutar) a Harmonia como Sons produzidos verticalmente. A Harmonia é o ajustamento, a proporção entre as partes de um todo sonoro, a combinação de Sons simultâneos. No estudo da música a Harmonia é a disciplina que se ocupa dos Acordes e suas implicações.
O que é acorde?
O Acorde é um grupo de três ou mais Sons, às vezes dois, executados simultaneamente. A explicação de suas estruturas e nomenclaturas requer outros conhecimentos que fogem aos limites deste texto – sendo justamente a Harmonia que se ocupa, num processo lento e árduo, dessas questões. Na linguagem cotidiana, a fronteira entre Harmonia e Acorde é tão tênue que não há uma clara diferença, ambos são utilizados indistintamente. Pode-se dizer que a Harmonia de uma peça musical se constitui de uma série (ou encadeamento) de Acordes. Você pode se surpreender com a Harmonia (geral) de uma peça. Você pode se surpreender com um determinado Acorde (específico) de uma peça. Tenho observado a existência de um erro recorrente: certas pessoas, ao falarem de uma determinada posição dos dedos no braço do violão, denominam-na “Nota”. Corrigindo: nesses casos, o nome correto é “Acorde”. Uma Nota musical, como já disse, refere-se a um Som; mais de duas Notas simultâneas são denominadas Acorde. Dessa forma, você pode dizer, por exemplo, “tal Nota do Acorde tal está desafinada”.
Ouvi falar de acorde dissonante. O que é dissonância? É algo ruim?
Como vimos, a experiência pitagoriana descortinou as superposições sonoras da corda esticada, os ditos Harmônicos. À ordenação desses Harmônicos numa determinada seqüência, foi dado o nome de Série Harmônica. Grosso modo, os primeiros Harmônicos de uma série – os que se encontram mais próximos ao Som fundamental (isto é, o Som resultante do comprimento total da corda) – são considerados Consonâncias11, pois, devido ao seu posicionamento (e a outros fatores como sua “repetição” dentro daquele espectro sonoro), provocam uma sensação de estabilidade, “de chão”; Já aqueles Harmônicos que se encontram mais afastados são considerados Dissonâncias, e por estarem mais afastados provocariam uma sensação de instabilidade. O que determina se um Acorde é ou não Dissonante é sua estrutura. Vale ressaltar que as Dissonâncias podem estar relacionadas tanto à Linha Melódica quanto à estrutura dos Acordes e isso nos aproxima ao ponto em que não mais é possível tratar os eventos musicais separadamente: Harmonia, Ritmo, Linhas Melódicas, tudo se entrelaça, eles se “afetam” uns aos outros. Há também questões históricas da música que determinam as
11 Consonância é um conceito abstrato que varia conforme o período da história da música, e seria, portanto, impossível fixar-lhe uma definição stricto senso.
Ensaios
aplicações (e validação dos conceitos) das Dissonâncias e Consonâncias. Por exemplo, o Trítono, nome de um Intervalo Dissonante específico, era abominado pela igreja católica da Idade Média. Seu uso foi proibido e ganhou o apelido de diabolus in musica.
Intervalo? O que é intervalo?
Denomina-se Intervalo a relação existente entre as Notas musicais, tanto horizontais (Melodia) quanto verticais (Harmonia). Mas, retomando o assunto das Dissonâncias, essas, a partir da Renascença, ganharam usos cada vez mais ricos e extensos. No período Barroco, as Dissonâncias eram tratadas com extrema cautela, e foram criadas, de fato, complexas leis para reger seu uso. Elas não podiam aparecer (serem ouvidas e escritas) de repente, sem preparação, e também não podiam desaparecer de repente, sem uma resolução. Posteriormente as regras foram sendo modificadas e, a partir do século XX, com o surgimento das idéias schoenberguianas12 sobre dodecafonismo – e demais correntes subseqüentes como serialismo, aleatorismo, músicas eletrônicas – a Dissonância, bem como uma maciça lista de conceitos musicais, foi redimensionada. Vistas com um zoom mais próximo, em autores como Chico Buarque, Tom Jobim, Edu Lobo, dentre outros, as Dissonâncias são ricamente exploradas; já em gêneros como Pagode, Axé e Arrocha as Dissonâncias são quase inexistentes. Essa dualidade tensão/repouso (Dissonância/Consonância) é uma das questões mais exploradas na música do Ocidente.
Existe algum sistema de codificação dos sons?
Existe sim, a partitura. Guido D‘Arezzo (c. 995-depois de 1033) desenvolveu um sistema de ensino da escrita e leitura musical, no qual, certos Sons são representados com Notas musicais localizadas em linhas e espaços. Esse sistema, por ele denominado Solmização, deu origem à palavra Solfejo. A leitura desses signos (pronunciação e leitura das Notas, entonação, leitura das representações rítmicas e melódicas) é denominada Solfejo. Uma pessoa está solfejando quando está lendo (normalmente em voz alta) as Notas musicais representadas no Pentagrama – o sistema de cinco linhas e quatro espaços, também designado Pauta. D‘ Arezzo tomou a sílaba inicial de cada verso do antigo Hino litúrgico a São João Batista, que rezava: UT queant laxis, Resonaris fibris, Mira gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labi reatum, Sancte Ionnes.13 Posteriormente, Ut foi substituído por Dó. Outros signos foram também incorporados, dentre eles: o Sustenido que “eleva” a Altura da Nota, o Bemol que a “abaixa” e o Bequadro que anula o efeito dos signos anteriores. Por exemplo, se à Nota Lá (padrão da Afinação) é adicionado um bemol,
o número de vibrações diminui de 440 Hz para aproximadamente 415 Hz, o que nos daria a sensação de ser um Som mais Grave. Resumindo, o sistema atual tradicional ficou com doze nomes diferentes para representar certos Sons. Esses Sons, no sistema atual ao qual estou me referindo, podem ser representados, inicialmente, numa seqüência, isto é, numa Escala musical e são eles: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si, e cada uma dessas Notas pode ser modificada (alterada) com a utilização dos Bemóis, e Sustenidos (e os Bequadros).
Surgiu-me uma dúvida: sobre a canção desafinado, de Tom Jobim. É isso mesmo, desafinado? Ele quer dizer que está desafinado?
Neste caso, sob o ponto de vista do sistema musical ao qual venho me referindo – porque há outros sistemas – a palavra Desafinado seria imprecisa, pois a Nota musical que provoca aquele “gostinho” – para alguns estranheza, para outros uma delícia – em “amor” (“se você disser que eu desafino, amor”), essa Nota não está, stricto senso, desafinada. Ela é um tipo de Dissonância, pois na Bossa Nova “isto é muito natural”. Dizer que ela está desafinada, tecnicamente falando, seria algo como medir o amor em centímetros. Ela poderia estar desafinada, se o cantor assim o fizer – afinal, “os desafinados também têm coração”.
Mas, de que forma essa nota poderia estar desafinada?
Lembre que, como disse, cada Nota musical possui uma quantidade
12 Arnold Schoenberg (1874-1951) foi um importante compositor do século XX.
13 Para que teus servos possam cantar livremente as maravilhas dos teus atos, elimina toda mancha de culpa de seus sujos lábios, oh São João.
preestabelecida de ondulações por segundo – e tenha sempre em mente que isso é apenas uma convenção desse sistema. Eu disse também que a distância entre as Notas se denomina Intervalo. Pois bem, nesse sistema, a menor distância possível entre dois Sons (Intervalo) é designada Semitom (ou meio Tom). Talvez a visualização de um piano (afinado) seja a imagem que mais facilite a compreensão: nesse instrumento você pode ver teclas brancas e teclas pretas. Se você tocar cada tecla do piano, uma a uma, da direita à esquerda, ou vice-versa, você estará tocando Semitons, isto é, as distâncias “menores” e, dentro desse sistema, as “menores” possíveis. Todavia, é necessário frisar que dizer “as distâncias menores possíveis” não exclui a existência de outros sons intermediários, de distâncias ainda menores do que os Semitons. Eles de fato existem, mas são utilizados nesse sistema com outra conotação14. Pois bem, é ali, justamente nos Sons que se encontram entre as distâncias menores, no “meio do caminho” que residem nossas percepções – fruto da convenção – de sons “desafinados”, de desafinação. Dito também em outras palavras, um pianista que execute aquela melodia num piano “bem afinado”, não teria condição de tocar a Nota do “amor” de Jobim desafinada, porque o piano utiliza Sons que foram previamente ajustados (Afinados). Já outros instrumentos como os de corda (com algum dedo da mão esquerda, violonistas e guitarristas podem “empurrar” a corda para cima ou para abaixo alterando a Afinação do instrumento), os de sopro, e a voz humana, são capazes sim, de sair da Afinação padronizada, de tocar ou cantar em micro-distâncias, de atingir algum ponto fora do alvo prefixado. Invertendo a idéia de Adkins, imagine a noção de Nota afinada assim: o alvo (Nota musical) é pré-estabelecido pelo sistema, e a flecha (o cantor, ou um instrumentista) deve acertar o alvo; se não o fizer, voilà, ele está desafinado.
Ao pensar em Jobim, lembrei de perguntar o que é tom, ou tonalidade?
Dizer que uma música está num determinado Tom, ou Tonalidade, por exemplo, em Lá Bemol Maior, é dizer que os Sons que se produzem giram em torno da Nota Lá Bemol, que é, nesse caso, denominado Centro Tonal; seria algo como um sistema solar (Centro Tonal), no qual, certos planetas (as Notas musicais, qualquer uma das doze acima mencionadas) giram ao seu redor. Utiliza-se a palavra Modulação para dizer que a peça musical mudou de um Centro Tonal a outro, por exemplo, “a peça modulou de Lá Bemol menor para Ré Sustenido maior”. O conhecimento da Melodia, da Harmonia e do Ritmo pode conduzir a outro conceito: Polifonia, isto é, Sons elaborados contrapontisticamente; que conservam a individualidade das Linhas Melódicas. A música de Johann Sebastian Bach (1685-1750) é considerada o ápice da Polifonia, do Contraponto.
O que é contraponto?
É um termo utilizado, desde o século XIV, para designar a combinação horizontal de Linhas Melódicas. Seria algo como duas ou mais pessoas cantando coisas diferentes simultaneamente. Para começar, escute alguma das “Invenções a Duas Vozes” de Bach (talvez a Nº. 1) – a palavra “Voz” é utilizada em música para designar qualquer Linha Melódica, independentemente do instrumento que a executa. Nessas peças a Linha superior é executada ao piano (ou cravo) com a mão direita e a inferior com a esquerda, criando uma espécie de diálogo sonoro – o Contraponto. Escute, pelo menos, três vezes um trechinho da peça. Na primeira vez, concentre-se numa Voz (ou imagine
14 Utilizam-se em outras ações como Vibratos. O piano não é capaz de produzir Vibratos, pois seus Sons estão sujeitos à Afinação fixa do instrumento. Já nos instrumentos de corda, por exemplo, os dedos da mão esquerda podem fazer vibrar a corda e com isso provocar alterações na Afinação padrão, mas no caso do Vibrato, nosso ouvido não percebe a Nota como desafinada e sim como “embelecida”.
Ensaios
a mão que a executa). Na segunda vez, concentre-se na outra Voz. No início pode ser necessário repetir a audição para melhor “fixar” cada Voz. Quando tiver discernido cada uma delas, atente sua escuta às duas Vozes simultaneamente, algo como ouvir em stereo, em dois canais. Lembra do Olho Mágico? É mais ou menos isso, como “escutar em 3D”.
Podemos pensar que as peças têm algum tipo de forma? Que conceito é esse?
Se uma peça tem início e fim, então ela tem uma Forma. A Forma é a estrutura ou plano de uma composição musical; é objeto da disciplina chamada Formas musicais que estuda especificamente os elementos de construção musical. Sonatas, Rondós, Valsas, Choros, Forma binária, Forma cíclica, todos esses termos estão inseridos no conceito de Forma. O Choro tradicional, por exemplo, tem Forma cíclica, de Rondó: A-B-A-C-A (as letras maiúsculas são utilizadas convencionalmente para representar cada seção da peça). Quando Erick Satie (18661925) foi criticado como compositor no conservatório de Paris, porque suas músicas “careciam de Forma”, ele revidou compondo suas irônicas “Três Peças em Forma de Pêra”. Certas Formas musicais possuem procedimentos básicos, que não são únicos nem necessários. De modo geral esses procedimentos poderiam ser: exposição do(s) tema(s), às vezes precedido(s) de uma introdução; desenvolvimento (ou variações) do(s) tema(s); re-exposição do(s) tema(s) que, por sua vez, é passível de variações e mutações. Tudo depende da escolha e objetivo do compositor. Em certas ocasiões, há também uma Coda.
Coda, o que é isso?
Essa palavra indica a seção derradeira de uma peça musical, e eu aqui a utilizo para escrever as palavras finais deste texto. Coda: qualquer um dos conceitos supracitados encontra páginas extensas que os tratam sob diversos ângulos – muitas vezes divergentes. Portanto, o panorama que fiz nada mais é do que uma aproximação. Esforcei-me em configurá-los da maneira mais clara que me foi possível; confesso que jamais imaginei encontrar tantas dificuldades de simplificar certos termos. De alguma forma, sofri as palavras do compositor mexicano Carlos Chávez que certa vez dissera: “é tão impossível traduzir música em palavras como traduzir Cervantes em equações matemáticas”. As abordagens que até aqui fiz só terão completado seu sentido se, e somente se, o leitor treinar o seu ouvido. Ouvir é uma prática que está para o músico, para o amante da música – e para você que até aqui chegou, meu “desocupado leitor” – como a leitura está para o escritor. Muito tempo de transpiração é despendido pelos músicos envolvidos, muito mais do que os ínfimos e efêmeros instantes de inspiração. Há uma espécie de cadeia “alimentar”, onde cada um se nutre com o esforço do outro: o compositor escreve para
o instrumentista executar e o instrumentista toca para o ouvinte escutar. Cada um faz sua parte. (E o ouvinte, qual sua parte?) Ao ouvinte cabe o prazer de escutar com atenção. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça! (Parábola do semeador).
Referências:
Caesar, Rodolfo. Círculos ceifados. Rio de Janeiro:
7letras, 2008. Chávez, Carlos. O pensamento musical. México D.F.: Fondo de Cultura Econômica, 1964.
Dahlhaus, Carl editor. Brockhaus Riemann Musik
Lexicón. 5 vols. Mainz: Serie Musik Piper Shott, 1979. Dourado, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004.
Ferraz, Silvio. Notas Atos Gestos. Rio de Janeiro: 7letras,
2008. Giannetti, Eduardo. O livro das citações. Companhia das Letras. São Paulo: Schwarcz, 2008.
Grout, Donald Jay. Historia de la música Occidental. Traduzido por León Mames. Madrid: Alianza Editorial, 1980.
Kerman, Joseph. Musicologia. Traduzido por Álvaro
Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987. Milan, Luys. El Maestro opere complete per vihuela. 1ª ed. 1535-36. Editado por Ruggero Chiesa. Milano: Edizioni Survini Zerboni, 1974.
Sadie, Stanley editor. The New Grove Dictionary of
Music and Musicians. London: McMillian, 1980. Schafer, Murray. O ouvido pensante. 1ª ed. 1986. Traduzido por Marisa Fonterrada et al. São Paulo: Unesp, 1992.
Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Traduzido por Jair Barbosa. São Paulo: UNESP, 2005.
Schoenberg, Arnold. Harmonia. Traduzido por Marden Maluf. São Paulo: UNESP, 1999.
Minha música em cena
Tom Tavares1
Resumo
O compositor discorre abreviadamente sobre a sua trajetória, enfatizando a frutífera relação com as artes cênicas, e disponibiliza fichas técnicas contendo nomes de todos os músicos que contribuíram para a materialização dos seus trabalhos destinados a peças teatrais e espetáculos de dança encenados na Bahia. Palavras-chave: Compositor - peças teatrais espetáculos de dança
Abstract
The composer briefly talks about his career, emphasizing the fruitful relationship with the scenic arts, and make available the production credits, including names of all musicians who contributed to the materialization of his works intended for theatrical plays and dance performances exhibited in Bahia.
Composer -theatrical plays -dance performances
Meu curso de criação musical para Artes Cênicas começou quando eu tinha uns 9, 10 anos de idade, ainda na minha terra natal, Santana dos Brejos, então uma pequeníssima cidade de não mais que dois mil habitantes, localizada no velho oeste baiano. Aquilo era um mundo fechado, pedaço de terra fora do mundo, sem rio, sem estrada, sem caminho, sem luz. Sem teatro, sem cinema, sem artes, em suma. Se dança havia – quando havia – era de salão. Com a devida distância estabelecida pelo vigário.
É certo que sabíamos que havia um mundo além dali, mas não o saboreávamos. Para o santanense, cujo bairrismo o aproxima do santamarense, o mundo real era o mundo local. E bastava. O resto era o resto do mundo, periferia orbitante.
Na memória que me resta, consta que o mundo só entrou em minha terra - banhada por um tênue e inconstante córrego - na forma de onda, ou melhor, através de ondas: ondas do rádio. Isso foi na segunda metade dos anos cinqüenta, com a chegada de um receptor, nobilíssimo ornamento pomposamente alçado ao centro da sala de jantar, alimentado por uma bateria de caminhão. Sem luz elétrica, quando a cidade escurecia no final da tarde o som do rádio brilhava, compondo a trilha sonora das noites sertanejas. E a imaginação voava.
Além do encantamento provocado pela transmissão das músicas do cancioneiro popular brasileiro, outro romance se estabelecia diante da descoberta de pontos no dia que levavam ao ar pérolas do rádio-teatro, também conhecidas como novelas radiofônicas. Fascinavam-me os enredos, as tramas, as interpretações. Mas, este deslumbramento se avultava a cada aplicação de efeitos sonoros, diante da audição das insubstituíveis canções-tema, confirmando um final feliz para o casamento das artes.
Na Rádio Nacional, eu ouvia novelas que apresentavam atmosfera interiorana, a exemplo de Jerônimo, O Herói Do Sertão, e outras, de ambientação urbana, cujo modelo eram As Aventuras Do Anjo. Na primeira, a sonoplastia destacava o ruído dos cascos dos cavalos, os sons dos carros de bois, dos pássaros, do vento, dos rios, dos trovões. Na segunda, além das buzinas, do ronco dos motores dos carros, do burburinho das ruas da cidade grande, o imaginário era colorido pela ação repetida da Matilde, metralhadora de um dos companheiros do personagem principal. Um pouco mais tarde, girando o botão sintonizador até a Rádio Tupi, era a vez de “assistir” às viagens siderais de Radar, O Homem Do Espaço, novela que se distinguia pela utilização de sons futuristas, produzidos eletronicamente. Assim, daquele admirável mundo novo o rádio ia me ensinando as mais preciosas lições de casa.
Quando, enfim, eu fui pro mundo, caí nas Minas Gerais, cheguei ao Rio de Janeiro, e acabei na Bahia: pecador na terra do Salvador. Nas Minas, fui roqueiro. No Rio, popular brasileiro. Na Bahia, disseram que eu era erudito. Problema deles: eu podia ser tudo ou nada disso, menos cada um apenas. Corria a metade dos anos setenta quando aqui cheguei, trazendo na
1 Músico, compositor, prof. da Escola de Música da UFBA.
Ensaios bagagem uma guitarra, um violão, uma gaita
cromática, alguns discos, algumas partituras e
um velho gravador. O resto era descartável.
Meu vestibular tinha na banca Ernst
Widmer, Paulo Gondim, Lindembergue Cardoso
e Piero Bastianelli. Quem teme, treme. Eu tremi,
sim... mas, entrei. E foi ali mesmo, na Escola de
Música da UFBA, que cedo travei contatos
imediatos com todos os graus das demais artes.
Sim, vale lembrar que, na época, ela era a Escola
de Música e Artes Cênicas. Trocávamos
figurinhas de todos os matizes nas aulas de
Integração Artística, insubstituível disciplina
ministrada por quatro professores: um de
Música, um de Teatro, um de Dança e um de
Artes Plásticas.
Aqui, abro um parêntesis para lembrar que,
na soterópolis de então, havia dois nomes no
ápice da produção musical para as Artes
Cênicas: Lindembergue Cardoso e Fernando
Cerqueira. Pra minha sorte, ambos foram meus
professores de Composição. E não foi só isso:
ambos estavam, naquele justo momento, se
afastando das trilhas e caminhando para a quase
exclusividade de dedicação à área musical,
presumível exigência da vida acadêmica. Para
que tal acontecesse, é possível que houvesse,
também, outra razão: teatro dava trabalho,
tomava muito tempo e pagava pouco. Assim,
saem os mestres, entram os pupilos. E eu estava
no ponto esperando o trem.
Eu estava no ponto, pronto pra começar, e
fui chamado por Fernando Cerqueira para
integrar o grupo de execução da sua música,
escrita especialmente para Vertigem do Sagrado,
uma produção de arte integrada dirigida por Lia
Robatto e Luciano Diniz, apresentada no Solar
do Unhão no mês de janeiro de 1977. Éramos
quatro estranhos bruxos agitando um grande
caldeirão de sons: Jayme Ledezma, Antonio José
Isturain, Walmir Palma e eu. Cada ensaio, uma
aula. Cada encenação, uma prova. Mais um bom
curso na minha vida. E, do lado de fora, ainda
ouvia-se a boa música do Mar Revolto.
Quando janeiro acabou, Rufo Herrera –
outro nome de peso na elaboração de trilhas
daquele período – precisava de alguém para dar
seqüência ao seu trabalho musical na montagem
de uma peça infantil chamada Joga Babico No
Lixo. Apresentei-me. Lembro-me bem que foi à
tarde: antes do ensaio, tivemos uma conversa em
que ele expôs idéias acerca da aplicação da música na peça em questão e me mostrou uma pequena partitura contendo, apenas, a linha melódica. Delegou-me a harmonização e adequação à cena. Desejou-me boa-sorte e nunca mais o vi. Resultado: acabei criando o resto da parte sonora, assumindo a direção musical e executando, sozinho, ao vivo, todo o trabalho, valendo-me do meu velho violão, da gaita cromática e de alguns acessórios percussivos. Foi no tombo, como dizem os motoristas de carro sem motor de arranque ou com bateria descarregada. Mas, pegou.
Daí em diante, tornou-se impossível parar de trilhar: o teatro necessitava e eu gostava. Ou seja: necessitávamos os dois. Precisa mais?
Bom, chega de contar histórias. Coloquemos os números na ribalta, em pauta. A seguir, faço questão de deixar registradas informações básicas acerca de cada um dos 48 trabalhos de composição e direção musical para dança e teatro por mim realizados na Bahia (títulos, autores, diretores, locais e datas) destacando, agradecidamente, os nomes daqueles que dividiram comigo o prazer de sonorizar ações dramáticas, movimentos, emoções, sonhos: instrumentistas que concretizaram a harmonização entre as minhas fantasias musicais e a encantadora realização do imaginoso mundo das Artes Cênicas.
JOGA BABICO NO LIXO – Texto: Volker Ludwig // Direção: Gildásio Leite // Composição e Direção Musical: Rufo Herrera e Tom Tavares // Música ao Vivo: Tom Tavares (voz, violão, percussão) // Local: Teatro do ICBA – 1977.
MOVIMENTALIZAÇÃO – Concepção e Direção: Lia Robatto (Grupo Experimental de Dança) // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Chiquinho Brandão (flauta), Efraim Cruz (violino), Dílson Peixoto (viola), Tom Tavares (voz, violão), Jaime Ledezma (violoncelo), Joel Moura (percussão), Carmen Lúcia Amorim (voz), Renato Aguiar (voz/percussão), Juarez Tavares (voz), Odeval Matos (voz), André Pelagio Bessa (voz) // Locais: Teatro Castro Alves – 1977
INSTANTE DE UMA CRUZADA – Direção: Içara Dantas (Grupo Cruzada) // Coreografia: Grupo Cruzada // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao
Vivo: Chiquinho Brandão (flauta), Efraim Cruz (violino), Tom Tavares (voz, violão), Jaime Ledezma (violoncelo), Dílson Peixoto (viola), Juarez Tavares (voz), Joel Moura (percussão), Renato Aguiar (voz/percussão), Carmen Lúcia Amorim (voz), Odeval Matos (voz), André Pelagio Bessa (voz) // Local: TCA – 1977
VIA SACRA – Texto: Henri Ghéon // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Lino Neto (flauta, baixo) e Tom Tavares (voz, violão, teclado, canalha) // Local: Igrejas de Salvador – 1978.
MOBILIZAÇÃO – Concepção e Direção: Lia Robatto // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Oscar Dourado (flauta), Efraim Cruz (violino), Carmen Guadalupe (violino), Dílson Peixoto (viola), Lino Neto (guitarra), Jaime Ledezma (celo), Sarquis (baixo), Sérgio Guedes (piano), Afonso Silva (bateria), Jaime Sodré (bateria), Tom Tavares (voz, violão, regência) // Local: TCA – 1978
DON CHICOTE MULA MANCA E SEU FIEL COMPANHEIRO ZÉ CHUPANÇA – Texto: Oscar Von Pfuhl // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Regina Cajazeira (flauta), Juracy Bemol (trompete), Renato Aguiar (violão), Jaime Sodré (bateria) // Locais: Auditório da Biblioteca Central e Teatro Castro Alves – 1978
DANÇA?! – Concepção, Direção e Execução: Lia Rodrigues, Lívia Serafim, Leda Muhana (Grupo Ecos) // Composição, Direção e Execução Musical ao Vivo: Chiquinho Brandão (flauta), Tom Tavares (violão), Jorge Amorim (percussão) // Local: Solar do Unhão – 1978
CHOQUE – Texto: Criação Coletiva (Luciano Diniz, Carlos Ribas, Eduardo Moraes, Era Encarnação, Maria de Fátima, Rita Crandon) // Direção: Luciano Diniz // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: Caetano Veloso e Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio Alcyvando Luz): Chiquinho Brandão (flauta), Tom Tavares (violão), Lino Neto (baixo), Jaime Sodré (bateria) // Local: Sala do Coro TCA– 1978
O ROMANCE DOS DOIS SOLDADOS DE HERODES – Texto: Osman Lins // Direção: Deolindo Checcucci // Composição e Direção Musical: Tom Tavares e Chiquinho Brandão // Música ao Vivo: Chiquinho Brandão (flauta), Renato Aguiar (violão) // Local: Teatro Santo Antônio – 1978
FAUSTO – Texto: Johann Wolfgang Von Goethe // Direção: Márcio Meirelles // Composição, Direção Musical e Gravação (Estúdio Alcyvando Luz): Chiquinho Brandão (flauta), Tom Tavares (violão) // Local: Sala do Coro do TCA – 1978
DOROTÉIA – Texto: Nelson Rodrigues // Direção: Deolindo Checcucci // Direção Musical: Tom Tavares e Chiquinho Brandão // Música Gravada (Estúdio EMUS): trilha criada a partir de gravações diversas // Local: Teatro SENAC-Pelourinho – 1978
RENTE QUE NEM PÃO QUENTE – Texto: Gildásio Leite e Grupo Batalha // Direção: Gildásio Leite // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Dominique Harry Smith (violão) // Local: diversas cidades da Bahia – 1978
NEGRO AMOR DE RENDAS BRANCAS – Texto: Jurema Penna // Direção: Antônio Barretto // Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio EMUS): Tom Tavares (violão, percussão), Hans Ludwig (trompete, percussão), trilha incluindo gravações diversas // Local: Teatro Santo Antônio – 1978
MAIS QUERO UM ASNO QUE ME CARREGUE QUE CAVALO QUE ME DERRUBE” – Texto e Direção: Carlos Alberto Soffredini // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: T. Tavares e Fábio Cintra // Música ao Vivo: 1ª. Temporada: Chiquinho Brandão (flauta), Edu Nascimento (violão), Moisés Gabrielli (baixo), Jaime Sodré (bateria) // 2ª. Temporada: Chiquinho Brandão (flauta), Tom Tavares (violão), Lino Neto (baixo), Raul Carlos Gomes (bateria) // Local: Sala do Coro do TCA
– 1978
BOCAS NO INFERNO – Texto: Cleise Mendes, Deolindo Checcucci // Direção:
Ensaios
Deolindo Checcucci // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Luciano Chaves (flauta), Edu Nascimento (guitarra), Moisés Gabrielli (baixo), Jaime Sodré (bateria) // Local: Circo Renascente – 1979
JOÃOZINHO E MARIA – Texto: Jacob e Wilhelm Grimm // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio EMUS): Lino Neto (flauta), Hans Ludwig (trompete), Tom Tavares (voz, violão, baixo, percussão), Jaime Sodré (bateria), Andréa Daltro (voz), Tereza Oliveira (voz) // Local: Teatro Castro Alves – 1979
ALICE – Texto: Lewis Carroll // Direção: Márcio Meirelles // Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: criação e execução pelo elenco // Local: Sala do Coro do Teatro Castro Alves – 1979
SINA – Concepção e Direção: Lia Robatto (Grupo Experimental de Dança) // Composição e Direção Musical: Lindembergue Cardoso // Direção e Regência de Ensaios: Tom Tavares // Música ao Vivo: Sopranos: Andréa Daltro, Celina Lopes, Brasilena Trindade, Marilúcia Trindade, Tânia Morais, Zélia Barros; Contraltos: Carmen Guadalupe (clarineta), Guilhermina Andrade, Cândida Lobão (celo); Tenores: Keiler Rego, Renato Aguiar (percussão), Rui Figueiredo, Hans Ludwig (trompete), Efraim Cruz (violino); Baixos: Élcio Sá, Jaime Ledezma (celo), Roberto Williams, Tom Tavares (violão, percussão) – Local: Teatro Castro Alves – 1979
DIA DE AUSÊNCIA – Texto: Douglas T. Ward // Direção: Floyd Gaffney // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Juracy Bemol (trompete), Asa Branca (violão), Renato Aguiar (violão/percussão), Andréa Daltro (voz) // Local: Teatro Santo Antônio – 1979
LOCOMOC E MILIPILI – Texto: Rainer Hachfeld e Volker Ludwig // Direção: Gildásio Leite // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio EMUS): Tom Tavares (voz / violão), Lino Neto (baixo), Jair Bala (bateria) // Local: Teatro do ICBA – 1979
PORQUE O GIGANTE AZUL CHORA – Texto: Ilo Krugli // Direção: Maria Idalina // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Edu Nascimento (guitarra), Asa Branca (violão), Beca (percussão) // Local: TCA
– 1979
APESAR DE TUDO, A TERRA SE MOVE
– Texto: Bertold Brecht – Adaptação: Cleise Mendes, Conceição Castro, Paulo Dourado // Direção: Paulo Dourado // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio IRDEB): Tom Tavares (violão, teclados, percussão, efeitos) // Local: TCA – 1979
BAAL – Texto: Bertold Brecht // Direção: Márcio Meirelles // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: executada pelo elenco // Local: Sala do Coro do Teatro Castro Alves – 1980
PONTO DE PARTIDA – Texto: Gianfrancesco Guarnieri // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Luiz Henrique de Codes (flauta), Curinga (violão), Lino Neto (baixo), Espiga (percussão) // Local: Teatro Vila Velha – 1980
JOÃOZINHO E MARIA – Texto: Jacob e Wilhelm Grimm // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio Irdeb): Luciano Chaves (flauta), Tom Tavares (voz, violão, baixo, percussão), Jorge Brasil (bateria), Dina Tavares (voz) // Local: Teatro Vila Velha – 1981
QUASE COM CERTEZA – Direção: Betty Grebler e Leda Muhana (Grupo Tran-Chan) // Composição “Música da Marcha”: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio IRDEB): Luciano Chaves (flauta), Tom Tavares (violão), Jaime Sodré (bateria) // Locais: Teatro Santo Antônio e Sala do Coro do Teatro Castro Alves – 1981
O PAI – Texto: August Strindberg // Direção: Márcio Meirelles // Composição e Dir. Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Grupo Anticália // Local: TCA – 1981
MARIA QUITÉRIA – Coreografia e Direção: Antonio C. Cardoso (Cia. De Dança Balé TCA) / / Composição e Dir. Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Reitoria UFBA – Equipamentos: Estúdio WR): Oscar Dourado (flauta), Klaus Haefele (clarineta), Francisco Assis (fagote), Juracy Bemol (trompete), Fernando Santos (percussão), Fernando Mascarenhas (percussão), Ana Margarida (violino), Georgina Lemos (violino), Roberto Urpia (viola), Paulo Costa Lima (violoncelo), Leonardo Boccia (violão), Erick Vasconcelos (regente) // Locais: TCA – 1981, Teatro da Paz (Belém), Teatro Amazonas (Manaus), Teatro José de Alencar (Fortaleza), Teatro Alberto Maranhão (Natal), Ginásio Geraldo Magalhães (Recife), S. Cristóvão (Sergipe), Teatro PUC (P. Alegre), Teatro Guaíra (Curitiba), Teatro Municipal (São Paulo), Palácio das Artes (B. Horizonte), Teatro Nacional (Brasília), Teatro João Caetano (Rio) – 1982
O JARDIM DAS BORBOLETAS – Texto: André Adler // Direção: Echio Reis // Direção Musical: Arthur Andrade e Magno Aguiar // Composição: Arthur Andrade, Magno Aguiar, Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio IRDEB): Magno Aguiar (acordeom), Arthur Andrade (violão), Lino Neto (baixo elétrico), Gun (bateria) // Local: Teatro Vila Velha – 1981
RAPUNZEL – Adaptação: Cleise Mendes e Márcio Meirelles // Direção: Márcio Meirelles // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: Diversos Autores // Música ao Vivo: Grupo Anticália // Local: Teatro do ICBA – 1981
O PATINHO FEIO – Texto: Maria Clara Machado // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio IRDEB): Luciano Chaves (flauta), Tom Tavares (voz, violão, baixo, percussão), Analívia Grimaldi (voz), Jane Cavazine (voz), Socorro Medeiros (voz), Ana Paula (voz), Agnaldo Lopes (voz) // Local: Teatro Castro Alves – 1982
FOLIA – Concepção, Direção e Execução: Grupo de Dança Contemporânea da UFBA // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Carlos Lyra, Aécio Flávio e Tom Tavares // Música “Saída e Asneiras”, de Tom Tavares, Gravada (Estúdio IRDEB): Tom Tavares (violão, percussão) // Local: Teatro Santo Antônio – 1982 e 1983
CINÉTICA – Concepção, Direção e Execução: Catarina Laborda e Reginaldo Flores (Grupo Cine) // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música “Fantasias” Gravada (Estúdio WR): Luciano Chaves (flauta), Tom Tavares (voz, violão), Anunciação (percussão) // Local: Sala do Coro do Teatro Castro Alves
– 1982
MACBETH – Texto: William Shakespeare // Direção: Márcio Meirelles // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: executada pelo elenco // Local: Teatro Castro Alves – 1982
SIMUN – Texto: August Strindberg // Direção: Márcio Meirelles // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Bárbara Vasconcelos (flautas), Celso Aguiar (violão), Cândida Lobão (violoncelo), Romeu Rezende (percussão) // Local: Teatro Santo Antônio – 1983
TEM CARDUME NO MEU AQUÁRIO -Texto: Miriam Fraga e Charanga Lítero-Musical Amigos de Pagu // Direção: Márcio Meirelles // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: Tom Tavares e Charanga Lítero-Musical Amigos de Pagu // Música ao Vivo: Tota Portela (flauta), Eduardo Torres (piano), Ivan Bastos (baixo), Ivan Huol (bateria) // Local: Circo Troca de Segredos - 1984
A COMPANHIA DAS ÍNDIAS – Texto: Nelson de Araújo // Direção: José Reynaldo // Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada: Trilha criada a partir de gravações diversas // Local: Teatro Vila Velha – 1984
JOÃOZINHO E MARIA – Texto: Jacob e Wilhelm Grimm // Direção: Manoel Lopes Pontes // Direção Musical e Composição: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio Corsário): Ulyses Factum (teclados), Miltinho (baixo), Augusto Papamel (bateria), Dina Tavares (voz) // Local: Cine-Teatro Nazareth – 1986
NO GALOPE DO RISO, IMPROVISO – Texto: Cordel adaptado por Cleise Mendes e
Ensaios
Roberto Wagner Leite (Ticão) // Direção: Roberto Wagner Leite // Direção Musical: Magno Aguiar // Composição: Tom Tavares // Música Gravada (Teatro IRDEB – Equipamentos: Estúdio IRDEB): Domingos Moraes (sanfona), Espiga (percussão), Beca (percussão) // Local: Teatro Santo Antônio – 1987
FEIO NÃO TEM CARÁTER – Texto: Aninha Franco // Direção: Ewald Hackler // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: Diversos Autores (Anos 60) // Música ao Vivo: Tom Tavares (voz, violão) // Local: Teatro do ICBA – 1987
COISAS E COISAS – Texto: Adaptação de Márcio Meirelles e Maria Eugênia Millet de “POR QUE OS TEATROS ESTÃO VAZIOS” (Karl Valentin) e “MATEUS E MATEUSA” (Qorpo-Santo) // Direção: Maria Eugênia Millet // Direção Musical: Tom Tavares // Música ao Vivo: Criação e execução pelo elenco // Local: TCA – 1988
É UMA BRASA, AMORA – Texto: José Antonio Moreno // Direção: J. A. Moreno / Shirley Pinheiro // Direção Musical: Tom Tavares // Composição: Diversos Autores (J.Guarda) // Música Gravada (Estúdio Tapwi’n): Sérgio Henriques (teclados) Paulo Costa (guitarra), Moisés Gabrielli (Baixo), Chico Costa (bateria) // Local: TCA – 1989
O PATINHO FEIO – Texto: Maria Clara Machado // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio Tapwi’n): Tom Tavares (voz, teclados, violão, baixo, percussão), Dina Tavares (voz), Marta Cirne (voz) // Local: Cine Teatro Nazaré –1991
A CONSPIRAÇÃO DOS ALFAIATES – Texto: Aninha Franco, Cleise Mendes, Paulo Dourado // Direção: Paulo Dourado // Composição e Direção Musical: Tom Tavares e Cacau Celuque // Música Gravada (Estúdios Tapwi’n): Tom Tavares (voz, violão, teclado, arranjos para coro), Cacau Celuque (teclados, programação de teclados,arranjo para coro) // Música ao Vivo: Cacau Celuque (teclados), Tostão (percussão) // Locais: Campo Grande e Teatro Castro Alves – 1992 e 1993
CANUDOS – Texto: Aninha Franco e Cleise Mendes // Direção: Paulo Dourado // Composição e Direção Musical: Tom Tavares e Cacau Celuque // Música Gravada (Estúdios Tapwi’n): Tom Tavares (violão, teclados), Cacau Celuque (teclados) // Locais: Ginásio SESI (Retiro), Ginásio SESI (Itapagipe), Concha Acústica TCA – 1993
REI BRASIL 500 ANOS: UMA ODISSÉIA TROPICAL (Ópera) – Autores: Fernando Cerqueira, José Carlos Capinan, Paulo Dourado // Direção: Paulo Dourado // Direção Musical do Núcleo de Música Popular: Tom Tavares // Arranjos: Tom Tavares (“Manda Chamar”, “Noiva Brasileira”), Fred Dantas (“Rei Brasil”) e Ângelo Castro (“Em Nome de Deus”) // Músicos: cantores Lazzo, Margareth Menezes, Carla Visi e Roberto Mendes, Gerônimo (trombone), Danilo Santana (teclados), Tom Tavares (teclados), Alex Mesquita (guitarra), Leonardo Caribé (viola), Gustavo Caribé (baixo), Walmar Paim (bateria), Cláudio Badega (percussão), Ori (percussão) e Orquestra Sinfônica da UFBA, regência de Pino Onnis // Local: Concha Acústica do TCA – 2000
O ABAJOUR LILÁS – Texto: Plínio Marcos // Direção: Manoel Lopes Pontes // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio Nov9mbro): Tom Tavares (voz, violão, guitarra, teclados, baixo, percussão, efeitos), Hermógenes Araújo (percussão) // Local: Sala do Coro do TCA – 2002
OS IKS – Texto: Collin Turnbull // Direção: Francisco Medeiros // Composição e Direção Musical: Tom Tavares // Música Gravada (Estúdio Palco Livre): Tom Tavares (voz, flauta doce, violino, violão, teclados, percussão, efeitos) // Local: Sala do Coro do TCA – 2002/2003
Tom Tavares – Violonista, compositor, regente, professor da Escola de Música da UFBA, roteirista do programa Música dos Mestres, roteirista e apresentador do programa Outros Baianos, coordenador do Festival de Música Educadora FM.
Entrevista com o músico Tuzé de Abreu, em 12 de Agosto de 2008.
1. Tuzé, eu gostaria que você falasse da sua trajetória como músico, e em que momento o seu trabalho foi atraído pelo teatro, a dança e o cinema.
Foi desde o início, praticamente. Eu comecei em casa cantando, tocando um pouquinho e tal, mas quando eu comecei profissionalmente foi na Orquestra de Dança, eu tocava saxofone. Mas, quase que imediatamente, não me lembro nem porque, eu me liguei ao Teatro Vila Velha, eu não me lembro nem por que... Foi assim, já desde o show, por exemplo, Velha Bossa Nova- Nova Bossa Velha, que eu já fazia um pouco de contra-regragem. No primeiro show individual de Caetano eu já toquei, no primeiro show individual de Gal Costa eu já toquei, eu só não toquei no de Gil e de Bethânia. E depois eles viajaram logo pro Rio, nós ficamos no grupo musical do teatro, no nosso grupo. E a gente não fazia só isso. Eu fui ator de teatro de boneco, eu fazia, mexia levemente, não era o cara principal, com iluminação... Porque lá no Vila Velha todo mundo fazia de tudo, né?! Eu fazia música pra peça... Eu só não fui ator por pouco, eu ia até ser ator, mas acabou que teve um problema lá, a pessoa ficou doente, mas desde aí, eu comecei a mexer, me ligar a teatro. Fiz música pra teatrinho de boneco,
Persona
pra várias peças de cordel, de João Augusto. Eu, sozinho, não, quem fazia era o grupo! Eu fazia uma, outro fazia outra, outro fazia outra... Começou daí. Fiz muita música pra teatro e pra dança também. Dança foi mais ou menos assim, no caminho do Vila Velha. Então, foi desde o início mesmo que eu estava ligado, primeiro ao teatro, depois à dança. Cinema foi o que chegou um pouquinho mais tarde.
2. Você acha que o fato de compor para uma obra de ficção, em que há uma estrutura prévia de enredo e personagens, limita sua criação?
Não, não limita não, não limita não! É difícil dizer, muita gente me pergunta se eu tenho um
método, eu não tenho
de infância, método
tem a voz de nenhum.
meu pai que Claro que
já morreu, eu procuro
que eu conse
conhecer...
gui uma gra-
Bom, tenho vação, que
um método eu misturo lá
básico, é o no meio das
seguinte: coisas. Então
pro diretor, Edgar achou
o cara que que o meutá fazendo a disco e que o
peça, eu filme dele
sempre tinham a ver,digo: “Eu e me chaposso fazer mou pra fa-a coisa mais zer a música.
bonita do mundo, se você não quiser, a prioridade é sua”. Aconteceu com o filme “Eu me Lembro”, eu fiz uma música que considerava linda pra uma cena lá do veraneio, ele pulando da ponte e tal, e o diretor não quis. Eu fiquei triste, mas acho que deve ser assim, porque o filme é do diretor, o músico está ali pra ajudar, músico é como um ator, como o câmera, como o fotógrafo... Agora, em geral, os diretores dão liberdade, mas acontecem coisas assim, como aconteceu, ele não quis a música que eu fiz pro veraneio, botou outra. Mas das outras músicas todas ele gostou, menos essa do veraneio, normal. Fiquei um pouco triste, achava linda, mas é assim mesmo, o interessante é a obra dele. Se alguém falar bem ou falar mal, vai falar bem ou mal dele, não de mim!
3. Como foi a sua contribuição musical para o filme “Eu Me Lembro”, de Edgar Navarro?
Eu já fiz música para vários filmes, “Eu me Lembro” foi o último, talvez o mais bem sucedido. Porque o filme, em si, ganhou sete prêmios no Festival de Brasília. “Eu me Lembro” foi interessante, Edgar me chamou porque ele gostou do meu disco, e achou que meu disco, o único que eu tenho lançado, tinha a ver com o que ele pensava do filme. E no disco tem muitas coisas de reminiscência
E calhou que eu tive uma sorte danada, que eu consegui fazer uma música belíssima, que é a música tema, que encantou todo mundo, inclusive a mim! E que Caetano Veloso botou letra, que gostou, então, deu certo. A música tema acrescentou muita coisa ao filme, claro que o filme não é só música, o filme tem qualidades maravilhosas dele próprio, que é independente da música, mas a música tema foi legal, acrescentou bem, deu um “tchan” legal. E fiz outras músicas, a principal foi a música tema, mas fiz outras músicas também, que é a cena da viagem de trem, por exemplo, tem outras, tem várias: o mágico, o hipnotizador, a mulher que jogou fogo na escada... Várias músicas.
4. Você vê diferenças significativas entre compor para teatro e para cinema? Quais seriam?
Não. Não vejo não. Bom, em geral o teatro é mais pobre, tem menos recursos. Algumas vezes
o teatro é ao vivo, por exemplo, eu fiz a trilha de uma peça, lá no Vila Velha ainda, “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, essa aqui eu nunca me esqueço, eram canções com letras de João Augusto, um personagem importantíssimo do teatro baiano, ele me deu as letras, eu fiz as canções, fiz os arranjos e escrevi para um pequeno grupo, do qual eu não participava, mas que tocava ao vivo na peça. Também, recentemente, eu fiz pra Deolindo, “Em Busca do Sonho Perdido”, ele me deu, também, nove letras, eu fiz nove músicas e nove arranjos, e foram tocadas ao vivo na peça, ...Não! Ao vivo não! Cantadas ao vivo, algumas coisas eram playback. Fiz também pra “Assis Valente”, embora tenha muito pouca música original minha, eu fiz a direção musical de “Assis Valente”, trabalhando as músicas do próprio Assis. Fiz arranjos, playbacks pros atores cantarem. Agora, tem duas musiquinhas minhas de passagem, de cenas dramáticas que eu fiz, mas aí foi mais direção musical, quase não teve criação propriamente, criação só nos arranjos.
Mas não vejo não, talvez essas pessoas que fazem mestrado, doutorado... Porque eu adoro fazer, mas não sou nenhum especialista... Um bom nisso é Luciano Bahia, Luciano Bahia é muito bom! Talvez um especialista, um dos nossos especialistas em música de teatro... Esse sim! Esse está em todas aí! Eu gostaria de fazer mais, mas... é difícil também...
5. Dentre essas experiências de criação, quais você destacaria? Em quais delas você acredita que a música teve um papel especialmente relevante?
Eu gostei muito do “Ali Babá”, eu gostei de todas, teve uma muita antiga: “A Boa Alma de Setsuan”, uma montagem que Yumara Rodrigues dirigiu... Umas coisas legais! Peças pra dança: “Meia Hora de Amor”; o outro também, “Choque Eletrônico”, que foi um grupo que era de Daniela Mercury, quando ela era dançarina, com a coreografia de Lia Robatto, que eu fiz de parceria com Zeca Freitas. Eu gosto muito dessas músicas. Agora a mais legal, a mais interessante, a mais bonita de todas as músicas, digamos, foi a tema de “Eu me Lembro”. Também ganhei um prêmio outra vez com outra trilha, “A Lenda de Ubirajara”, um filme de André Luiz Oliveira. Todos os trabalhos eu gostei, é difícil dizer qual eu gostei mais, mas, realmente, o tema de “Eu me Lembro” tem certo destaque, o tema, não o trabalho geral, o trabalho geral de todos foi semelhante, mas o tema de “Eu me Lembro”,
realmente, é uma
música
que eu considero especial, é! Foi, puxa, foi... eu digo que foi o Espírito Santo que mandou, Riachão diz que foi Jesus, “Jesus mandou o samba”... Eu estava estudando flautim quando veio a música toda, toquei no flautim, escrevi e pronto, ficou. Mas só essa música, uma música, não a trilha toda, a trilha toda foi legal, mas semelhante aos outros todos que eu fiz.
Persona
Agora, eu adoro! Se eu pudesse, eu só fazia música pra teatro, cinema e dança, principalmente pra cinema, porque cinema tem uma vantagem, porque é tudo em estúdio, não sei se é vantagem, é... não sei se a palavra seria privacidade, não sei que palavra, cinema é mais... o tipo de trabalho que só sai na hora, o teatro tem muito mais coisa, eu não sou contra, não, adoro tudo! No cinema depois que faz, seja lá o que Deus quiser! Teatro não, tem todo dia, passa aquele negócio, vai lá, um dia tá bem, um dia não tá bem... Dança também, adoro fazer música pra dança, nunca mais fiz. Eu tinha muita vontade de fazer uma música pro Balé do TCA, mas aí eu teria que parar, se me chamassem pra fazer isso, eu teria que parar. No momento eu estou numa situação fora do esperado e vai durar uns três anos, porque eu sou segunda flauta aqui na Orquestra da Universidade, mas o primeiro flautista vai passar três anos nos Estados Unidos, já viaja hoje, eu vou ficar sozinho, então eu vou ter que estudar muito, tô mais dedicado à flauta. Tem um lado bom, que eu vou crescer como flautista mas tem um lado ruim, que eu não tô vendo nada. Eu que era famoso aqui na Bahia de ver tudo quanto era peça de teatro, tudo quanto é dança, tudo quanto é show, não tô indo mais a nenhum, nem vi Policarpo Quaresma, não vi nada! Porque quando eu termino de estudar, oito horas, eu já tô cansado, o estudo é exaustivo, eu tô com 60 anos; aí eu fico lendo e vou dormir. Não tô indo... Por exemplo, já recusei alguns trabalhos, a direção de um show sobre a Tropicália, direção musical, eu recusei, eu não podia fazer, que ia ter que me envolver muito. Algumas coisas eu tenho recusado, um negócio de Rock and Roll também que eu ia participar, o pessoal me chamou, mas ia ser uma coisa chata. É aquele negócio, se você assume, tem que forçosamente abandonar outras coisas. E o pior, aqui é o meu emprego, eu não posso! Eu poderia até pedir licença, poderia até me aposentar, mas seria um pouco de sacanagem com a UFBA, porque no momento que estão precisando de mim, eu saio fora, aí vai ter que ficar chamando aluno, não sei quem, fulano... vai ter que pagar cachê... Aí eu tô nesse pequeno drama: eu não tenho tempo pra fazer, adoraria estar fazendo mais coisa. Eu tô com dois filmes aí em frente, prometidos, agora vamos ver, não sei. Porque também é muito complicado o cinema, por causa da grana... Aí isso demora e tal, mas eu tô com dois filmes prometidos, não quer dizer que vão acontecer, também não posso dizer que não vão, vamos ver! Agora, eu adoro! Se dependesse de mim, se eu pudesse, se eu não tivesse que ganhar dinheiro, e graças a Deus eu tenho condições de ganhar dinheiro, porque eu ganho aqui na Universidade razoavelmente o bastante pra mim, mas se eu não tivesse isso, se não tivesse dois filhos adolescentes, eu deixava, e se tivesse também, se tivesse volume de trabalho, porque também não adiantava deixar de tocar tudo, pra quê? Pra ter um filme amanhã, outro em 2011, uma peça de teatro...? Aí não dá! Porque Luciano Bahia, ele pega, porque ele é funcionário da Escola de Teatro! Então ele tá ali! Ótimo, e ele faz muito bem! Ele é, no momento, talvez o melhor na cidade, então ele tá ali pra isso! Eu adoraria! Se eu pudesse viver só disso, eu seria feliz.
Fernanda Veloso, 16 de Agosto de 2008.
Cenário
Policarpo Quaresma: uma apostacênica no país que não terminou
Cenário Luiz Marfuz1
O espetáculo Policarpo Quaresma, baseado no romance de Lima Barreto, é uma interlocução com variadas fontes populares e estéticas contemporâneas que compõem um tecido cênico: o carnaval, o circo, os desfiles, o circo, a chanchada, as caricaturas, as charges de época, a marujada, cantos de trabalho, o grotesco, o teatro de bonecos, cantigas de roda, entre outros. É um pouco do que há e do que ainda está por se fazer; como trata das interferências do universo de Lima Barreto, por meio de trechos dos diários, cartas e crônicas do autor; o que permite uma recontextualização e leitura crítica da personagem.
Um trecho da peça, dito por Policarpo, sinaliza bem o caminho da montagem: "Nunca são os homens de bom senso nem os burgueses ali da esquina que fazem as grandes reformas do mundo. Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, não teríamos nunca dei-xado as ca
vernas. A vi-
sil tinha descoberto a felicidade."
Nesta montagem, ora caminhamos juntos com o projeto visionário de Policarpo Quaresma (a pátria sonhada pela reafirmação da cultura indígena, a reforma da terra, a redenção pela política), ora nos permitimos olhá-lo criticamente. É ao mesmo tempo a (im)possibilidade de construção de um país marcado pela identidade dominante de uma cultura ou etnia e a necessidade de se repensálo a partir da confluência das diversas identidades e do reconhecimento das diferenças étnicas, sociais e econômicas.
Cenicamente, três dimensões se entrelaçam nas diretrizes estéticas do espetáculo: A dimensão idealista, pontuada pelos sonhos, delírios e alucinações de Policarpo que se plasmam na realidade do palco; A dimensão realista, marcada pela derrota da fantasia e o triunfo da realidade; A dimensão crítica - que XIII Montagem do Núcleo de Teatro do TCA TCA.Núcleo 2008
Ficha Técnica do Espetáculo POLICARPO QUARESMA, baseado no romance de Lima Barreto
Texto: Marcos Barbosa
Direção e Adaptação: Luiz Marfuz
Elenco:
Amarílio Salles
Anderson Dy Souza
Bernardo Del Rey
1 Diretor do espetáculo Policarpo Quaresma, O espetáculo estreou em 5.jun.2008, na Sala do Coro do TCA, e foi a XIII Montagem do Núcleo de Teatro do TCA – TCA.Núcleo 2008
Cláudia Di Moura Elaine Cardim Frieda Gutmann Hilton Cobra Jefferson Oliveira Marcio Bernardes Mônica Bittencourt Nélia Carvalho Oswaldo Baraúna Direção Musical: Jarbas Bittencourt Figurinos/Adereços: Miguel Carvalho Cenário/Adereços: Rodrigo Frota Coreografia: Marilza Oliveira Maquiagem: Marie Thauront Iluminação: Irma Vidal Preparação Vocal: Marcelo Jardim Técnicas de griô, clown e perna de pau: Rafael Morais Mímica Corporal Dramática: George Mascarenhas Adereços de Figurino: Zoíla Barata Assistentes de Direção: Fernanda Júlia, Lucas Modesto, Fabio Nieto e Thiago Gomes Assistentes de Produção: Patrícia Rammos, Susan Kalik, Helena Ramos, Aétio Oliveira Assistentes de Figurino: Leda Villas Boas, Berta Reis e Lina Lemos Assistentes de Cenografia: Hamilton Lima e Adriano Passos Assistentes de Maquiagem: Isadora Bisogni, Juliana Rabonovitch, Laura Haydée, Renata Soutomaior e Taty Oliveira Cenotécnicos: Agnaldo Queiroz, Adriano Passos, Israel Luz e George Santana Costureiras: Guida Maria, Iracema Rodrigues e Lúcia Bonina Equipe de Execução de Adereços: Agamenon Abreu, Zoíla Barata, Paulo Batistela, Boémia Almeida, Gil Fonseca, Maria Luiza Veiga, Albano D'Avila, Suely Garcia, Ísis Barreto, Brisa Moreno, Luiz Renato, Carlos Holanda, Bruno Vinhas, Léo Passos, Juliana Bebê e Mutirão de Belas Artes. Operação de luz: Pedro Rodrigues, Fernanda Júlia e Luiz Renato Operação de Som: Elias Batista Contra-regras: Társio Pinheiro, André Passos, Ismael Projeto gráfico: Antonio Figueredo Fotos: Adenor Gondim, Caroline Paternostro e Isabel Gouvêa Produção: Celeiro das Artes Direção de Produção: Clarissa Torres
Bastidores Lábaro Estrelado: dramaturgia
o olho gordo global, o
e uis, franciscana
olho de seca-lourenço, de
putaria, lixo barroco,
seca-pimenteira, está
tangas, miçangas,
cravado no celeiro auri
contas do rosário que
verde. Desate-se esse
o poeta popular
travo na garganta, essa
garimpa e tritura,
sede de banquete afinal
morde e assopra,
partilhado, com tudo
intui e delira, que
demorando em ser ruim e
nesta lira tudo se
demorado, nas senzalas
mistura: choro viril,
das favelas, nas celas das
rock meloso, rap
salas. Chega de bandeira
raivoso, valsa protes
arriada, folia guardada,
to, marcha a ré,
dessa cica de palavra
samba sina e devo
triste, esse jiló, esse ginge
ção, hinos de sadia
de espera que já passou
sacanagem .
da hora, que já durou
Da terra-virgem
tempo muito mais que
à mãe gentil, da
pompas de centenários,
amada idolatrada à
que já durou tempo
madrasta que faz
demais, totalmente
seus filhos carrega
demais.
rem pedras como
(Texto da autora
penitentes, erguendo
para programa de estréia
por cinco séculos
e MPB
Cleise Furtado Mendes1
Esta bandeira
Esta bandeira é tecida com cacos de sonho, fiapos de certezas, cordões de alegria, pontos de rezas, xingos e escrachos, ais
estrangeiras catedrais, o que resta da festa é sua gente. Gente olhando o céu, assuntando o horizonte, siderados pela sombra sonora de um objeto sim por que não voador, de luz um risco no disco velho arranhado repetindo razões pra ficar tudo como está. Gente que sonha com um candango doido que bote fogo e mude o jogo no continente-quintal, um redemunho com diabo e legião no meio, qualquer coisa entre a célula e o céu, afinal, pois a nossa esperança equilibrista já tem a perna bamba, que já lhe roubaram até a sombrinha de frevo esfarrapada. Gente que cochilou no balanço da rede verde, mas que tombo, mano! Só ficou farelo do estandarte estrelado que ia girar como doido na avenida.
E vamos cantar, que nunca é demais, as maravilhas, tonterías, brujerías do lado de baixo do Equador, que há tantos carnavais deslumbraram os cabrais e seus séquitos de cronistas embrujados, locos por ti, musa do meu fado. Mas abram-se os olhos verdes castanhos
de mulatas e mulatos que
do espetáculo, em 20 de novembro de 1999.)
Lábaro estrelado 1
No ano da graça e do espanto de 1999, às vésperas do novo milênio, um grupo de pessoas, partindo de vários pontos do Brasil, é atraído pela luz do Planalto Central. Eles chegam como se atendessem a uma vocação, um chamado, seja
1 Apresentação, personagens e cenas iniciais da peça. Extraído de: MENDES, Cleise Furtado. Lábaro Estrelado – Bocas do Inferno – O Bom Cabrito Berra. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2003.
ele interno ou externo. Não sabem de onde virá o toque, o sinal, mesmo porque para cada um deles isso é algo bem diverso.
O ponto comum entre eles é a busca de uma transformação, de uma “outra via” de viver, pois todos de algum modo adivinham que “longe das cercas embandeiradas que separam quintais (...) assenta a sombra sonora de um disco voador”. Eles se recusaram à apatia
e à indiferença do mundo globalizado, embora em diferentes graus de consciência, de acordo com seus itinerários pessoais.
Assim, eles puseram o pé na estrada em busca de um Grande Encontro. Todos fogem de certa peste que se pode chamar “desesperança” e se tornaram “desterrados” por livre arbítrio. Deixaram seus casebres, barracos, apartamentos ou sítios virtuais, e chegam com suas trouxas, mochilas e celulares, e também com todos os vícios de suas aventuras pregressas.
Nesse espaço simbólico, no “coração do hemisfério sul da América”, que é um pouco réplica anos 90 da choça de Macunaíma espelhando os contrastes desse “país-continente” que é também um “país-quintal” - todos estão vindo em busca de “raízes”, mas não mais as raízes folclóricas do regionalismo dos anos 20 e 30, e sim de uma alternativa possível, de alguma ilha de paz no mar de vagas certezas da vida contemporânea.
A entrada das personagens é um desfile dos tipos brasileiros que estão na nossa música, com seus “flagelados, pingentes, balconistas, palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados”, como já disse o poeta popular. Arlindo Orlando,
o sertanejo que vira suburbano; Kátia Flávia, a jovem transviada, a ovelha negra de todas as famílias; Lindonéia, a ex-puta disfarçada sob a máscara de devoção e patriotismo; Vinícius, o eterno enamorado, símbolo de nossa busca de realização pessoal no amor; Maringá, a exretirante nordestina que sonhou com o Sul; Dagmar, a mulata carioca; Agenor Caju, o militante frustrado; Lígia, a mulher amada; Nara Lee, a patricinha paulista; Zé da Hora, o malandro sem espaço para sua malandragem antiga, esmagado pelas poderosas mutretas oficializadas; Duda Sodré, o intelectual classe média, que zomba de todos, sempre irônico e superior.
A segunda parte do espetáculo trata das tentativas de convívio entre esses seres neste “acampamento” meio virtual. Como em todo lugar onde pessoas se reúnem, essas são relações perigosas: tanto amorosas quanto conflitantes. Zé da Hora, que conhecera Lindonéia como dona de um prostíbulo, reconhece-a, fazendo cair sua máscara de mulher recatada e devota. Isso só faz aumentar o vivo interesse de Arlindo Orlando por ela, embora ele também divida seu tesão entre Dagmar e Maringá. Lígia, sempre esvoaçante e “fullgás”, escapa às atenções de Vinícius e volta a intrometer-se entre Nara Lee e Duda Sodré, com os quais divide um passado de relações ambíguas. Duda a tudo critica, usando a ironia como escudo, e denunciando aquela rede de intrigas como uma grande gafieira. Maringá aproxima-se de Vinícius, ajudando-o
Bastidores fraternalmente a preparar seu “salto” das
angústias da paixão individual para um amor
compartilhado, coletivo. Kátia F. sempre
interessada em revolucionar os costumes e
desmascarar a burguesia, entra em confronto
aberto com Lígia e Nara Lee; Dagmar oscila entre
a malandragem de Zé da Hora e os planos
socialistas não muito claros de Agenor Caju,
levando os dois homens às “vias de fato”. Zé da
Hora, após perder Dagmar, aproxima-se
sedutoramente de Vinícius, que a esta altura já
está bem mais preocupado com o destino geral
do grupo.
Na terceira parte, atendendo a uma
interpelação de Vinícius sobre o verdadeiro sentido
de estarem ali, as personagens vão quebrando as
pequenas celas de suas obsessões pessoais e
caminhando em direção a uma transcendência,
embora terrena e enraizada no aqui e agora. Um
exemplo disso é Duda, que pela primeira vez fala
a sério sobre a possibilidade de um amor
verdadeiramente livre, que supere o ciúme e o
egoísmo .
Nesse estágio, o grupo vai conseguindo construir
um convívio em meio às diferenças, e enfatizando
sua identificação através do SONHO comum de um
novo mundo, do caminho para atingirem um ponto
de mutação que os levará o mais próximo possível
de um novo papel histórico: o dos “ilumencarnados
seres que esta terra habitarão”.
Personagens:
ARLINDO
ORLANDO Sertanejo ingênuo, depois suburbano, cantor brega; nos anos 90 virou Sem-Terra. Veio do sertão talvez mi-neiro, crédulo e devoto; o contato com a cidade
o tornou cético, desconfiado. Agora está voltando para o Grande Encontro no Planalto Central, com toda essa bagagem, misturada: a memória do misticismo e da ingenuidade, e a desconfiança com todo tipo de governo ou poder.
KÁTIA F.
Hippie andarilha, Jovem Transviada, Ovelha Negra. A jovem rebelde de todas as épocas, arrebitando nariz para a família e as convenções. Nos anos 90, não suportando a pressão doméstica, resolve ganhar o mundo. Tem a pressa típica dos muito jovens, acreditando que pode mudar tudo num piscar de olhos. Sobretudo, não tem papas na língua e afronta todo comportamento que julga “careta” ou niilista.
LINDONÉIA
Ex-dona de “casa de tolerância”, depois amante desprezada de homem casado, meio putona, meio mãezona, mas sempre sedenta de “respeitabilidade”, de aceitação na boa sociedade; por tentar imitar os padrões da pequena burguesia, inclusive nas ilusões patrióticas, mostra-se intolerante com a arte popular, em nome do “bomgosto”; nos anos 90, termina como religiosa fanática.
VINÍCIUS
O eterno enamorado; primeiro, trágico e possessivo, depois sonhador, boêmio; nos anos 70, embarca na aventura do amor livre, de liberar-se (e à sua amada) dos tormentos do ciúme e da possessividade; ao final, transforma o “absoluto” da paixão individual numa proposta de amor universal, de sentido transcendente. Nesse novo papel, simboliza o poeta que recupera os sonhos e ideais coletivos.
MARINGÁ
A ex-retirante nordestina que acreditou no Sul maravilha; na cidade, trabalhou como doméstica, depois virou cantora de churrascaria; tem um misticismo calmo, sereno, corpo a corpo, bem baiano; representa um desejo de mudança profundamente calcado no humano, nas relações de afeto, na experiência cotidiana. Aqui e agora, deixou tudo para ir ao Grande Encontro.
DAGMAR
Mulata carioca, porta-bandeira; cabrocha sambista, maneira, sestrosa; embora pareça ser a mera “mulher de malandro”, é cheia de truques e manhas, e tece seu reinado na surdina; na sua aparente submissão, joga com as fraquezas e vaidades dos parceiros, faz escolhas, impõe sua vontade e acaba conquistando sua liberação de modo nãousual, na contramão do sistema.
AGENOR CAJU
O rebelde libertário dos anos 70, tipo romântico-selvagem; revoltado e desajustado com a queda das utopias, busca uma ideologia pra viver, mas ao apaixonar-se ameniza seu radicalismo e insatisfação ; a contrapartida masculina da personagem de Kátia F, mas com uma tonalidade mais político-social. Nos anos 90,
o rapper das mensagens violentas, perturbadoras.
LIGIA
A mulher amada, ideal, inatingível. Passa intocável, como a Garota de Ipanema. Está sempre esvoaçando, escapando, e deleitando-se em ser objeto de admiração constante, seja de homens ou mulheres. Interessa-se simultaneamente pela tristeza de Vinícius, pelo ar entediado de Duda, pela faceirice de Nara Lee, e até pela agressividade de Kátia F., mas é incapaz de fixar-se em alguém, ou seja: “tem o destino da lua/ a todos encanta e não é de ninguém”.
NARA LEE
Garota bossa-nova, patricinha paulista. Aparentemente ingênua, mas esperta, matreira. A garota que “apronta” mas mantém as aparências. Nos anos 70, largou a faculdade de Sociologia e embarcou em experiências de convívio comunitário, desde acampamento hippie até tribo no Xingu; depois vira atriz de teatro experimental, massagista de eutonia, astróloga e especialista em cristais e florais.
ZÉ DA HORA
O malandro, “o barão da ralé” (segundo Chico Buarque); primeiro, o malandro light, tipo Lapa, depois sem espaço para sua malandragem antiga, esmagado pelas mutretas oficializadas; vira garotão Jovem Guarda, surfista e marombeiro; nos anos 90, torna-se marketeiro, produtor de mega eventos.
DUDA SODRÉ
O intelectual, sempre crítico, gozador, usando a ironia como escudo, olhando de cima as situações da ralé, como nas músicas de Duzek. O que nele se transforma é apenas a nova postura da elite pensante, a cada momento; mas é sempre superior e distanciado; chega ao Grande Encontro como um observador, meio “outsider”. É a contrapartida masculina da personagem Lígia, na incapacidade de fixar-se afetivamente.
OBS: As personagens se relacionam e reaparecem formando grupos em torno de certos traços ou características. Zé da Hora e Dagmar estão na órbita da malandragem, do jeitinho escuso de se safar das pressões; Agenor, Kátia e Maringá se identificam na esfera da rebeldia, cada qual a seu modo, com diferentes tonalidades sociais, comportamentais e étnicas; Vinícius e Lígia simbolizam, como sujeito e objeto,
o lirismo ou sentimentalismo bem nosso, a busca de realização no sonho do amor romântico; Arlindo Orlando e Lindonéia marcam-se pela exclusão, pela solidão, estão à margem por razões sociais ou morais; Nara Lee e Duda Sodré estão na área da urbanidade, dos vícios urbanos, da
Bastidores
classe média perdida, que mais e mais se estreita num sanduíche desconfortável, entre os poucos muito ricos e a multidão de miseráveis.
Entrada das personagens
Eles chegam aos poucos, com atitude de
expectativa, como se estranhassem e ao mesmo
tempo reconhecessem o lugar. São como
retirantes às avessas, vindos do litoral, das
cidades; são re-itinerantes, que vêm de todas as
partes do Brasil, e se encontram nesse ponto
mítico, simbólico: o Planalto Central.
Ao chegar, olham sempre para o céu, o
lábaro estrelado, procurando ou aguardando
algo. Além do tema geral que os reúne – tema
da volta, do retorno, da busca de si mesmo, do
outro, de qualquer coisa, de uma perspectiva,
sentido, ou razão para prosseguir e acreditar,
etc. – há o tema de cada um, a história de suas
vidas, sugeridas pelas músicas.
À medida que cada um chega, estabelece
rapidamente relação com os demais. Há entre eles
uma espécie de familiaridade imediata, que
dispensa apresentações, como se todos se
conhecessem de longa data. Na verdade, está
sempre implícito que todos sabem porque estão
ali, nesse mesmo lugar, embora cada um tenha
atendido a um chamado pessoal, particular, para
pôr o pé na estrada.
O Coro funciona como um reservatório do
imaginário brasileiro, espécie de “anima” coletiva,
da qual a cada momento saem personagens, e na
qual eles são novamente reabsorvidos, ao deixarem
sua individualidade. De lá vêm canções, citações
sonoras, poemas falados, réplicas, comentários,
murmúrios, reminiscências.
Abertura
Escuridão, céu estrelado.
Ouvem-se solfejos de músicas ufanistas bem
conhecidas. “Brasil, meu Brasil brasileiro...”/
“Isso aqui ô ô, é um pouquinho de Brasil, ai,
ai...”/ “Vejam, esta maravilha de cenário”, e
outras. Ainda em off, entra “Terra Virgem”, em
gravação original de Vicente Celestino.
Ó meu Brasil, para aumentar a tua glória,
/Dia virá no teu futuro ascensional/ Em que o
mundo invejará a tua história/ Porque serás o
paraíso universal!/ Beijam teus campos, que se
perdem no horizonte,/ O Rio-mar, o sol de ouro,
o céu de anil,/ E a Terra- Virgem que se mira numa fonte/ Enche de frutos o regaço do Brasil./ Sobre o alto Corcovado, engastado,/ Tens
o Cristo Redentor,/ Dominando a Guanabara, jóia rara,/ Do teu reino de esplendor!/ E nas praias, namoradas, encantadas,/ Do teu céu de eterno azul,/ Brancas ondas se debruçam e soluçam/ Sob o Cruzeiro do Sul!/ Berço de heróis! Terra de luz e de bondade!/ A natureza é um hino verde em teu louvor!/ Outra nação não há com tanta liberdade,/ Tanta fartura, tanta paz e tanto amor!
CORO (cantando) Um objeto sim/ um objeto não/um surgindo do céu/outro vindo do chão./Aparecerão/ no mesmo dia,/ na mesma cidade/ no mesmo clarão./ Um surgindo do céu / outro vindo do chão./Um objeto sim/ um objeto não./Atraídos/ pela luz do Planalto Central das Tordesilhas/ fundarão o seu reinado/dos ossos de Brasília/ das últimas paisagens/ depois do fim do mundo. /O reino de Eldorado/depois do fim do mundo/ virão /o objeto sim/ o objeto não/ os ilumencarnados seres/ que esta terra habitarão,/ novos seres que virão/ do fundo do céu/ do alto do chão.
Cena 1 – se lembra?
(Entra Vinícius, olha para o céu e queda-se contemplando as estrelas. Entra Arlindo Orlando.)
ARLINDO ORLANDO (Olha primeiro para o céu, depois para um ponto ao longe, cantarolando) Prepare o seu coração/ pras coisas que eu vou contar:/ eu venho lá do sertão,/ eu venho lá do sertão,/ eu venho lá do sertão/ e posso não lhe agradar...
(Falado) Por ser de lá, na certa por isso mesmo, não gosto de cama mole, não sei comer sem torresmo. Eu quase não falo, eu quase não sei de nada; sou como rês desgarrada nessa multidão, boiada caminhando a esmo. (Silêncio) Mas agora não pergunto mais pra onde vai a estrada. Agora não espero mais aquela madrugada... Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser... muito tranqüilo. ( Para Vinícius, puxando conversa.) Eu já andei, sem parar, dezessete légua e meia. (Sem obter resposta, olha também o céu.) Não há, oh gente, oh não! Luar como esse, não há não!
VINÍCIUS (Ainda olhando uma estrela no céu) Te esperei vinte e quatro horas ou mais de cada dia que eu vivi; te esperei mais de sete dias por semana, mais de doze meses cada ano, e te esperava até um novo século surgir. Te esperei na mesa, te esperei na cama... olhando as estrelas te esperei na lama. (Cantando) Hoje... eu quero a rosa mais linda que houver/ e a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem... (segue cantando baixinho.)
ARLINDO ORLANDO Ora, direis, ouvir estrelas... e eu vos direi que, um dia, as estradas voltarão... voltarão trazendo todos para a festa do lugar. Aqui, neste mesmo lugar... neste mesmo lugar de nós todos. As estradas voltarão, voltarão trazendo todos para a festa do lugar. Aqui, no planalto central, numa enchente amazônica, numa explosão atlântica! Virá, que eu vi!
(Entra Lindonéia. É uma mulher cansada, de ar triste, melancólico, mas com a força concentrada de um cacto. Entra e fala meio para si mesma, até perceber Arlindo Orlando e Vinícius.)
LINDONÉIA (Olhando para o céu) Ah! já é hora do corpo vencer a manhã! Outro dia já vem, e a vida se cansa na esquina, fugindo, fugindo, pra outro lugar. Ah! Que vontade eu tenho de sair... estrada de terra que só me leva... nunca mais me traz. E os olhos vão procurar... onde foi que eu me perdi... Ir numa viagem que só traz barro, pedra, pó, e nunca mais... (Olha em torno) Mas o lugar é aqui. É aqui! E virá, que eu vi! (Canta, melancólica) Nosso amor, que eu não esqueço/ e que teve seu começo/ numa festa de São João, /morre hoje sem foguete, /sem retrato, sem bilhete/ sem luar, sem violão./ Perto de você me calo,/ tudo penso, nada falo, / tenho medo de chorar./Nunca mais quero seu beijo/ mas meu último desejo/ você não pode negar. / Se alguma pessoa amiga/ pedir que você lhe diga/ se você me quer ou não,/ diga que você me adora,/ que você
lamenta e chora/ a nossa separação.../ Às pessoas que eu detesto,/ diga sempre que eu não presto,/que o meu lar é um botequim,/ que eu arruinei sua vida,/ que eu não mereço a comida/ que você pagou pra mim.
ARLINDO ORLANDO (Para ela, galante) Olha que a vida, tão linda, se perde em tristezas assim...
LINDONÉIA (Convidando-o a entrar na sua nostalgia) Se lembra das fogueiras? Se lembra dos balões? Se lembra dos luares dos sertões?
ARLINDO ORLANDO A roupa no varal... Feriado Nacional... e as estrelas salpicadas nas canções...
VINÍCIUS (Que permanece imerso no seu sonho, à parte, cantarolando) Hoje eu quero paz de criança dormindo/ quero abandono de flores se abrindo/ para enfeitar a noite do meu bem.../Quero a alegria de um barco voltando/ (segue baixinho) quero ternura de mãos se encontrando/ para enfeitar a noite do meu bem...
LINDONÉIA (Sobre canto baixinho de Vinícius) Se lembra quando toda modinha falava de amor? Eu era tão criança... e ainda sou. Querendo acreditar que o dia vai raiar...
ARLINDO ORLANDO E LINDONÉIA (Rindo) ...só porque uma cantiga anunciou...
LINDONÉIA Ah! O futuro não é mais o que era antigamente...
ARLINDO ORLANDO Tempo, tempo...
LINDONËIA (Cantarolando) Tempo, tempo, tempo, tempo!...
Bastidores Cena 2 – chega de saudade
(Entra KÁTIA F. Sua entrada efusiva quebra o clima nostálgico do diálogo anterior.)
KÁTIA F. Ah! Chega de saudade! Chega de saudade! Fecha a cortina do passado! Eu só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder!
ARLINDO ORLANDO (Cético) E então? Tudo azul? Sol de norte a sul?
KÁTIA F. Tudo bem. Tudo sem força e direção. Nos barracos da cidade, ninguém mais tem ilusão... Qualquer coisa que se mova, é um alvo... ninguém tá a salvo. O pop não poupa ninguém... o Papa é pop, o presidente é pop, e nós também! Qualquer coisa que se mova é um alvo, ninguém tá a salvo...
ARLINDO ORLANDO É, e a cada minuto que passa, tem muita gente chegando... tem muita gente chegando, pagando, pagando pra ver!
LINDONÉIA (Para Arlindo, mas referindo-se a Kátia) Então... vamos botar água no feijão.
KÁTIA F. Eu passo mal, eu passo mal quando vejo, no jornal, antas e pequenos roedores na coluna social. Se exibindo na TV, falando dos antepassados que vieram pro Brasil, trazendo o negro acorrentado, nossos índios massacrados, e diz que descobriu
o Brasil! Bah! Eu tenho minhas dúvidas se Deus é brasileiro...
LINDONÉIA (escandalizada) Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Este aqui é um país abençoado por Deus, e bonito por natureza! O meu Brasil brasileiro, esse Brasil que canta é feliz! Terra de Iracema, de Tupã, de Oxalá...
KÁTIA F. Oxalá tomara! Oxalá Deus queira! Aqui tá mais pra Haiti do que pra Havaí! Mais que um piano, é um cavaquinho; mais que um bailinho, é um carnaval; mais que um país, é um continente; mais que um continente... é um quintal!
LINDONÉIA Mas quem é você, que não sabe o que diz?
KÁTIA F. (Cantando) Levava uma vida sossegada/ gostava de sombra e água fresca.../ Meu Deus, quanto tempo eu passei/ sem saber... /Foi quando meu pai me disse:/ “Filha, você é a ovelha negra/ da família!/ Agora é hora de você assumir.../ e sumir!
(Falando, sobre fundo de “Ovelha Negra”) Ah, baby, baby, não adianta chamar... Mamãe, mamãe, não chore... a vida é assim mesmo... Eu quero, eu posso; eu quis, eu fiz.... Tinha apenas dezessete anos, no dia em que saí de casa, e não fazem mais de quatro semanas que eu estou na estrada. Apesar das minhas roupas rasgadas, eu acredito que vá conseguir uma carona que me leve, pelo menos, à cidade mais próxima. O pó da estrada gruda na minha roupa. Na minha boca, sempre o mesmo assunto: o pó da estrada. (Para Arlindo e Lindonéia, como se fizesse uma confidência) Diz que tem muita gente de agora se adiantando, partindo pra lá, pra dois mil e um, e dois, e tempo afora, até onde essa estrada do tempo vai dar. Eu não posso mais esperar! Quero o paraíso agora! E aqui! Virá, que eu vi!
ARLINDO ORLANDO
Presta atenção, querida, mal começaste a conhecer a vida... Repare bem, o mundo é um moinho... vai triturar teus sonhos...
CORO
(Baixinho)
Noventa milhões em ação / pra frente, Brasil,/ salve a seleção! /De repente é aquela/ corrente pra frente!/ Parece que todo Brasil deu a mão/ juntos ligados na mesma emoção/ tudo é um só coração!/ Todos juntos, vamos,/ pra frente Brasil, Brasil...
LINDONÉIA (Repete para si mesma, como uma reza, com devoção)
Aqui não tem terremoto, aqui não tem revolução, é um país abençoado... Ilha de paz e prosperidade, num mundo conturbado. Aqui tem vastos seringais, lindos coqueirais, mulatas que são as tais, a sandália de prata, a verde mata, cachoeiras e cascatas, o rio-mar, a floresta, a natureza em festa; vestido rendado, terreiro iluminado no chão, no céu, estrela e balão; tem tucupi, tacacá, Castro Alves, vatapá, e aqui plantando tudo dá... (Para Kátia F., severa) Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste, criança!
(Entra Agenor Caju.) AGENOR CAJU (Cantando) Não me convidaram / pra essa festa pobre/ que os homens armaram/ pra me convencer/ a pagar sem ver/ toda essa droga/ que já vem malhada / antes d’eu nascer./ Não me ofereceram/ nem um cigarro/ fiquei na porta estacionando os carros.../ Não me elegeram chefe de nada!/ O meu cartão de crédito/ é uma navalha!/ Brasil, mostra tua cara/ quero ver quem paga/ pra gente ficar assim.../ Brasil, qual é
o teu negócio? O nome do teu sócio?/Confia em mim...
LINDONÉIA (Contrariada) Ah! Mais um pro baião de dois!
AGENOR CAJU (Falando) Meu partido é um coração partido, e as ilusões estão todas perdidas. Os meus sonhos foram vendidos tão barato que eu nem acredito! Ah! Eu nem acredito! Nas noites de frio é melhor nem nascer, nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer. E assim nos tornamos brasileiros: te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro... transformam o país inteiro num puteiro... porque assim se ganha mais dinheiro!
LINDONÉIA Credo em cruz! Laia sabadaia sabadana ave-maria!
AGENOR CAJU Meus heróis morreram de overdose; meus inimigos estão no poder! Ideologia? Eu quero uma pra viver! (Mais calmo) Eu quero a sorte de um amor tranqüilo, eu quero uma casa no campo, onde eu possa ficar do tamanho da paz! Eu sou um cara cansado de correr na direção contrária, sem podium de chegada ou beijo de namorada. Mas se você achar que eu estou derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados! Porque o tempo não pára! O tempo não pára! E virá, que eu vi!
Bastidores Intermediações: sobre Lábaro
Lábaro Estrelado, concebido e construído a partir de um acervo de 265 músicas populares brasileiras de diversas épocas, reunido por um criterioso trabalho de pesquisa, é aqui a culminância exemplar de um processo de criação. O texto dramático de Cleise Mendes vale-se do já dito – neste caso, mais precisamente, de signos musicados que estão impressos em quase todos os ouvidos, corações e mentes brasileiros
– para compor um espetáculo teatral em que as imagens visuais, as palavras e os sons colaboram e confrontam-se ao mesmo tempo, explorando ininterruptamente o jogo entre reconhecimento e estranhamento.
As personagens de Lábaro têm nomes que imediatamente ecoam na memória do público ou do leitor como frases musicais – Lindonéia, Maringá, Dagmar, Lígia, Arlindo Orlando, Kátia
F. – ou que evocam a história da MPB, como Nara Lee e Vinícius, mas isto não é tudo. Se o nome de cada uma dessas personagens remete a uma específica música, sua caracterização foi desentranhada de um aglomerado de situações e tipos humanos que vêm sendo cantados pela música popular. Ou seja, se a nomeação pode ser remetida a uma autoria ou a uma assinatura, a ação das personagens em cena explora a pluralidade anônima e coletiva que se projeta nas letras das músicas.
Lábaro é um largo e sensível painel dessa gente brasileira que ama, sofre, luta, canta e quer ser feliz, sem brechas por onde possam se insinuar qualquer resquício de pieguice, ufanismo ou ressentimento; exibe ao público – e agora ao leitor – com delicadeza e contundência, o lirismo do júbilo e das dores de amor, os encontros e desencontros apaixonados que vêm sendo vividos e cantados pelos brasileiros; mas, paralelamente, expõe situaçõeslimite, em que a violência do drama social urbano atinge o seu ponto de inflexão trágica – “Olha aí... é o meu guri” / “Tá lá o corpo estendido no chão”. Através do recurso à colagem de versos dispersos, a peça incorpora e interpela a memória do país, a partir de um ponto de vista muito ouvido por todos, mas muito pouco considerado pela cultura letrada, uma visão de mundo plasmada na vida cotidiana que habita as ruas, as favelas, as margens, o morro, o sertão, o exílio. A essas vozes rigorosamente populares da música, a autora aproxima outras, que têm extração erudita mas são capazes de cantar afinadas ao tom predominante e maior, colaborando para transformar a música brasileira numa possibilidade extraordinária de convívio e de contraste, de atrito e de troca entre o que em nós é conflitivo, doce e bárbaro.
Para os que não tiveram a oportunidade de assistir ao belo espetáculo encenado por José Possi Neto na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, na temporada de verão de 1999, o texto de Lábaro Estrelado se torna particularmente instigante. É difícil, diante da palavra impressa, “esquecer” a musicalidade impregnada em cada frase, em cada fala das personagens, pois são todas elas um rearranjo de versos memorizados pela audição continuada de uma trilha sonora que acompanha, através dos rádios, da televisão, dos aparelhos de som, o nosso dia a dia brasileiro. Mas este desafio é o convite melhor que a peça nos faz: escutar ou perscrutar o Brasil que as letras da música popular contêm e expressam. O texto de Cleise Mendes pode querer nos dizer que talvez só ela, a música popular, entre todas as demais linguagens artísticas, seja capaz de dar conta, de agregar e integrar a multiplicidade de vivências sociais, geográficas, culturais e estéticas que são resultantes, por um lado, da riqueza humana e cultural que nos constitui; por outro lado, das separações e das desigualdades que nos constrangem. Lido assim, Lábaro Estrelado é uma homenagem do teatro à música e à gente do Brasil.
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É Professora titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia e participa do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA.
Foto: Vinicius Lima
Exuberantes, vibrantes, incansáveis e donos de movimentos virtuosos, os 20 dançarinos do Balé Folclórico da Bahia subiram ao palco do Teatro Castro Alves, nos dias 23 e 24 de agosto de 2008, para mostrar como o Grupo tem conquistado cada dia mais prestígio nos quatro cantos do mundo. Ao todo, são 40 integrantes dançarinos, músicos e cantores. Considerada, desde 1994, pela Associação Mundial de Críticos como a “melhor companhia de dança folclórica do mundo”, a companhia, que já ganhou página inteira no The New York Times, foi fundada em 1988 e, de lá para cá, viajou para vários países, acumulou prêmios e ganhou reconhecimento nacional e internacional. Ao longo dessas duas décadas, inúmeros dançarinos formados pelo Balé seguiram carreira profissional em outros países e em grandes companhias. Com sua dança e sonoridade arrebatadoras, o Balé, única companhia de dança folclórica profissional do país, promoveu em agosto duas apresentações no Teatro Castro Alves, especialmente montadas para a comemoração dos seus 20 anos.
Em 2008, o aclamado Balé Folclórico da Bahia (BFB) comemorou seus 20 anos em grande estilo. Além de dois espetáculos no Teatro Castro Alves, a Companhia, dirigida por Walson Botelho, promoveu uma exposição no foyer do TCA para exibir objetos que fazem parte da sua história
Em agosto o BaléFolclórico da Bahiacomemorou 20 anos e levou
obra-prima de Stravinsky para
o palco do TCA, em Salvador
Bastidores troféus, cartazes e cartas recebidas do mundo
inteiro etc. O espetáculo comemorativo
aconteceu no dia 23 de agosto, só para
convidados, e no dia 24, para o público. O
espetáculo foi dividido em duas partes. Nos
primeiros 40 minutos, o Balé abriu a noite com
a emblemática obra-prima Sagração da
Primavera, do compositor Igor Stravinsky. Na
segunda parte, foi apresentado um compacto de
todas as coreografias montadas ao longo das duas
décadas do Balé.
A comemoração, que teve também um
coquetel fechado para convidados, no dia 23, após
a estréia, contou com a presença de autoridades,
artistas, jornalistas e críticos de dança do Brasil
inteiro. “Os 20 anos do Balé Folclórico
representam uma conquista, não só para a Bahia,
mas para a dança do país inteiro”, comemora
Walson Botelho, diretor geral do Balé. “Poucas
companhias privadas no país e sem um
patrocinador regular conseguem chegar onde
chegamos, não só em termos de duração, mas
também com reconhecimento do público e da
crítica”, acrescenta.
Sagração da primavera
Um ritual pagão onde sábios anciãos,
sentados em círculo, assistem uma garota que dança até morrer. Ela é sacrificada para apaziguar o Deus da primavera. Com a maturidade dos seus 20 anos e nível técnico reconhecido internacionalmente, o Balé Folclórico da Bahia interpretou a obra-prima Sagração da Primavera, do compositor russo Igor Stravinsky, com coreografia de José Carlos Arandiba (Zebrinha), o diretor artístico da companhia. “A idéia é aplicar tudo que os dançarinos aprendem dentro do projeto Balé que você não vê, mantido pela companhia, e fazer também com que nosso corpo dance repertórios conhecidos e interpretados por grandes companhias do mundo”, explica o diretor artístico. No projeto, os integrantes recebem formação de dança moderna, clássica e jazz. Segundo Walson Botelho, “não é uma coreografia moderna, contemporânea nem clássica, mas uma releitura usando todo o conhecimento dos dançarinos aliado a uma linguagem afro-brasileira, que é a técnica utilizada pelo Balé”.
A obra-prima Sagração da Primavera escandalizou Paris em 1913, quando estreou no Théatre des Champs-Élysées com coreografia assinada por Vaslav Nijinsky, por fugir das convenções musicais da época e dos padrões do ballet clássico do início do século XX. Atualmente,
Foto: Vinicius Lima
no entanto, é um dos repertórios preferidos das grandes companhias de dança no mundo e representa um marco divisor da música sinfônica moderna.
Rotina profissional
Atualmente, o BFB funciona em regime integral de seis horas de trabalho por dia. Os 40 integrantes da companhia – dançarinos, músicos e cantores – recebem toda preparação técnica para dança, música e teatro. Para preservar e divulgar, no mais puro estado, as principais manifestações folclóricas da Bahia, o Balé desenvolveu uma linguagem cênica que parte basicamente dos aspectos populares da cultura baiana atingindo a contemporaneidade do mundo, sem perder suas raízes nem se distanciar da realidade nacional.
Com agenda programada até o ano de 2010,
o Balé também possui um segundo corpo de baile, que realiza espetáculos há 14 anos, de segundafeira a sábado, às 20 horas, no Teatro Miguel Santana, no Pelourinho, tendo como público, principalmente, turistas estrangeiros e de outros estados do Brasil. O teatro, onde funciona a sede do Balé, foi doado pelo Governo do Estado da Bahia, em 2003, quando o Grupo fez 15 anos. “A conquista da nossa sede própria, doada pelo Estado, foi um reconhecimento ao trabalho de divulgação da cultura e da arte que o Balé vem fazendo no Brasil e no mundo”, afirma Walson Botelho.
Prêmios e reconhecimento
Considerado, desde 1994, pela Associação Mundial de Críticos como a “melhor companhia de dança folclórica do mundo”, o Balé Folclórico da Bahia acumulou ao longo dos seus 20 anos vários prêmios e reconhecimento. Dentre eles: o Prêmio Fiat (oferecido pela Fiat do Brasil como a melhor companhia de dança do país em 1990);
o Prêmio Estímulo (oferecido pelo Ministério da Cultura como a melhor companhia de dança do país e melhor espetáculo de dança do país em 1993); o Prêmio Mambembão (oferecido pelo Ministério da Cultura como a melhor pesquisa em cultura popular e melhor preparação técnica de elenco em 1996); o Prêmio Bom do Brasil (oferecido pela Varig como um dos cinco mais importantes projetos sócio-culturais existentes no país em 2004) e o Prêmio Mérito ao Turismo (oferecido pelo Governo da Bahia pelos serviços prestados ao turismo no estado).
Desde 1993, sob a direção artística de José Carlos Arandiba (Zebrinha), a companhia atingiu um nível de aprimoramento técnicointerpretativo, que despertou a atenção dos
Bastidores
mais exigentes profissionais e críticos da área de dança. A Bahia, celeiro das manifestações populares no país, tem sido a maior inspiração para as pesquisas do Balé, que através da dança, música e de outras expressões que compõem o espetáculo consegue legitimar o folclore baiano em suas coreografias. “O nosso grande objetivo é a educação. Meu princípio é que cada pessoa faz seu caminho. No Balé, há pessoas de todas as faixas etárias e de todas as classes sociais. A partir do momento que alguém entra por nossa porta, deixa fora um monte de estigma,” afirma o diretor artístico. “O sucesso do Balé são as pessoas, prova disso é que muitos aprendem aqui e saem para seguir carreira em grandes companhias internacionais,” revela.
História
Única companhia de dança folclórica
profissional do país, o Balé Folclórico da Bahia
(BFB) foi criado em 1988 por Walson Botelho
e Ninho Reis. De lá para cá, o Balé já recebeu
vários prêmios e se apresentou em 182 cidades
e em 19 países, dentre eles Estados Unidos,
Itália, Canadá, Dinamarca, Austrália,
Alemanha, França, Holanda e Suíça, além de
ter conquistado sucesso de público e
considerável prestígio da crítica especializada
no Brasil e no exterior.
Baseado em Salvador, o Balé fez sua
estréia durante o Festival de Dança de
Joinville, mesmo antes do seu lançamento
oficial, quando mais de 20 mil pessoas
aplaudiram o espetáculo “Bahia de Todas as
Cores”. O sucesso imediato propagou-se e
trouxe convites para apresentações em outros
Festivais por todo o país.
Em 1992 fez sua estréia internacional no
renomado Festival da Alexander Platz, em
Berlim, para um público de mais de 50 mil
pessoas, sendo ovacionado no final do
espetáculo por quase 15 minutos. Seguiu então,
a partir daí, realizando pequenas outras turnês ao exterior, até que foi convidado para participar da Bienal de Dança de Lyon, na França, considerado o mais importante evento do gênero no mundo, ao lado de companhias já consagradas, a exemplo da Alvin Ailey Dance Company, Ballet of Harlem, Bill T-Jones Dance Company, Dayton Ballet, entre outras.
O sucesso estrondoso das apresentações no Auditorium Maurice Ravel , em Lyon, foi motivo para a primeira crítica de página inteira no jornal “The New York Times”, escrita por Anna Kisselgoff, que considerou o BFB, entre as diversas companhias dos quatro continentes presentes no Festival, como a que melhor exemplificava a temática do evento: Mama África.
A Bienal de Dança de Lyon em 1994 abriu caminho para as constantes turnês internacionais da companhia, que retornou à Bienal em 1996 e consagrou-se, definitivamente, como uma das mais importantes e atuantes companhias de dança do mundo, na atualidade. A partir daquele ano realizou turnês às Américas do Norte e Central, Europa e Austrália, tendo apresentado-se em importantes palcos dos Estados Unidos, França, Canadá, Suíça, Alemanha, Portugal, Finlândia, Suécia, Dinamarca, dentre vários outros.